Por Mário Salimon
© 2016
O pacote tinha tamanho e aparência familiares, lembrando os velhos tempos em que as encomendas feitas pela internet eram novidade, causando grande excitação. Não tinha emissor, mas os dados deixavam clara a origem: Vitigudino, Espanha. Ao ler aquele nome de cidade, comecei a saber do que se tratava. Meu rosto se entregou a um sorriso involuntário, mas gostoso, e saí à procura de uma tesoura que me permitisse abrir a caixa de reciclado. Com poucos movimentos, consegui livrar as abas e chegar ao conteúdo, dois discos de vinil, pesados e bem fabricados, cujo título espantoso era um indicador a mais de quem o havia enviado. Em Helvética garrafal, a capa dizia: “Mário’s All Time Favorite Songs as Played by Dorothy Ashby”. Somente ele seria capaz disso. Meu amigo Telônio. Não poderia ser outro. Como poderia Dorothy Ashby , por exemplo, ter regravado Follow Me, composta por Pat Metheny mais de dez anos depois da morte de minha querida harpista? Telônio, Telônio! Que delícia de presente era aquele, com as canções de Steely Dan, Tom Jobim, David Bowie, Joni Mitchel e outras maravilhas de minha juventude. Por baixo do disco, havia um bilhete escrito a mão. “Prezado, estarei em Madri na próxima semana. Me encantaria falar com você. Costumo jantar no Mesón Toledo, que fica na calle de Antonio López. Todos os dias, entre 21h00 e 23h00. É um ponto de coroas, mas o povo aqui bebe, fuma, xinga e ri muito. Espero que possa vir.”
Telônio ficou rico por suas habilidades musicais. Começou gravando a gaita de Stevie Wonder em canções populares chupanejas. A moda havia voltado com tudo, porque os artistas buscavam novidades nas músicas dos anos 80, e aquela gaitinha havia sido um must durante muito tempo. Inúmeros eram os discos que traziam na capa aquela frase “com participação especial de Stevie Wonder”. A bisneta do gigante musical havia chorado ao ouvir as emulações de Telônio, votado como a inteligência artificial mais precisa do ramo musical. Não havia como diferenciá-lo dos originais. Ele imitava qualquer artista nos detalhes, mas fazia algo que o tornava ainda mais interessante: com suas habilidades de copiador, tornara-se inestimável no ramo de restauração de discos.
Com o apodrecimento precoce dos CDs e a quebradeira das gravadoras e empresas de streaming, o vinil e os cassetes haviam voltado com tudo, inflando o ramo de restauração e copiagem de discos. Alípio Yangtzé Um jovem muito esperto, herdeiro de uma dinheirama feita com a venda de capinhas para celular na primeira metade do século 21, comprara o velho complexo que antes servia como estação Rodoferroviária em Brasília para montar seu negócio, estrategicamente colocado na confluência das turnês-caravana de chupanejos e axé literal. Desde suas andanças, na infância, que o lugar o encantava. Seus pais haviam imigrado da China, estabelecendo-se como comerciantes na Feira dos Importados. Em longas caminhadas, Alípio partia da Feira em explorações do território próximo, passando por estacionamentos lotados de carros a combustão abandonados, galpões vazios e velhas ruínas de hipermercados. Seu destino favorito era a velha Rodoferroviária, onde passava horas explorando as soluções arquitetônicas, os painéis de Athos Bulcão e velhos arquivos de órgãos da burocracia governamental que haviam também ocupado aquele interessante edifício. Foi com imensa alegria que Alípio descobriu, ao consultar agentes imobiliários, a possibilidade de comprar e ocupar aquele espaço, o que aconteceu por volta de seu aniversário de 25 anos, época em que ja despontava como um dos principais restauradores do mundo, graças ao sucesso de Telônio, que havia criado como projeto final de graduação.
O Estúdio Locomotiva era frequentado pela nata dos músicos e empresários, que pagavam pequenas fortunas para fazer suas gravações, e também por colecionadores excêntricos e milionários, que desejavam restaurar discos riscados e fitas emendadas ou com dropouts. O estacionamento vivia cheio de carros muito invocados, ainda que de muito mau gosto, expresso nas escolhas de cor e no exagero dos acessórios. A ostentação é um traço forte destes nossos tempos, tenho que admitir, e meu emprego como tutor de inteligências artificiais me coloca no meio dessa gente ridícula, mas endinheirada, que pode bancar luxos como o trabalho de um computador musical autorizado.
Telônio era muito rápido. Talvez até demais. Tanto que Alípio tivera que criar todo um entorno de atividades socioculturais para justificar os custos de cada hora de aluguel de seu complexo musical. O tempo de uso de Telônio poderia ser calculado na base dos segundos, sendo o tempo maior gasto no processo sempre aquele empreendido pelo lado humano. Bastava ele entender o desafio que o serviço já estaria pronto para prensagem. Assim, um grande investimento havia sido feito para que os clientes tivessem que passar por todo um processo de paparicações e salamaleques antes e depois daquele átimo em que o efetivo trabalho se realizava no minúsculo console em que se abrigava a mente de Telônio. Nunca me cansei de estar com ele naquela sala mágica.
Sempre guardarei na memória cada vez que adentrei o espaço daquela criatura magnífica. Refaço o caminho frequentemente para dele não me esquecer. A última visita me vem mais facilmente à cabeça. Chego ao prédio pela feiosa pista derivada do eixo Monumental e o carro me deixa à entrada principal, onde sou recebido pela equipe de frente. Enquanto conversam comigo casual e educadamente, o computador central se ocupa de analisar, inconspicuamente, minha voz, meu cheiro, minha íris. Como se nenhuma triagem tivesse sido necessária, a atendente pergunta por que ainda não entrei, indicando o caminho com a mão espalmada. Seus dedos são a coisa mais linda e, uma vez mais, falho na tarefa de descobrir se ela é ou não gente. Como se isso fizesse muita diferença. Bom, para mim faz, mas isso não interessa no momento. Sigo por um curto corredor onde ocorre outra série de procedimentos subliminares. Estimo que me esterilizem com ultravioleta e tratem de eliminar qualquer traço de eletricidade estática. Também devem medir minha pulsação com infravermelho, analisar o gestual em busca de nervosismo extremo e coisas do gênero.
Depois de um chá de gengibre em um confortável nicho com plantas e esculturas sinuosas e calmantes, sou recebido pelo agente de produção, que me narra os problemas da vez. Sim, problemas. Estou ali porque Telônio é genioso. Claro que é, ou não seria capaz de criar maravilhas, de perceber a diferença entre um Hoffmann e um Rickenbacker. Tampouco conseguiria emular a gaita de Stevie Wonder. Élcio é um agente produtor muito experiente, tido como amigo de Telônio. Ele está nervoso, com seu jeito ao mesmo tempo levemente efeminado, mas ainda assim machão chupanejo. Desconfia que Telônio espichou os ouvidos pela casa. Gesticula muito e fala do computador sem citar seu nome, tentando disfarçar. “Ele está impossível hoje. Teimoso demais. Está solando até em gravação de parabéns pra você”. Mas não quero entrar nessa lembrança. O foco é o lugar. Élcio me pega pelo braço e puxa para o hall, em direção ao salão principal.
A temperatura é agradabilíssima e o spray libera, de tanto em tanto tempo, a quantidade certa de essência de alfazema. O hall é decorado com retratos e esculturas de grandes figuras da música. Jobim, Sarah, Oscar, Hamilton, Rosa, Debussy e tantos outros nos cercam e protegem. Não há chupanejos nem literais naquele espaço. Telônio não permite qualquer traço dessa escória, nem em sua memória. Cada serviço terminado é sumariamente eliminado de seus bancos. Alípio os guarda em outras paragens. As histórias de sabotagem tem sido várias. Algo não está bem. Por isso me chamaram. Deixo o hall para trás e ingresso no salão principal, com o maravilhoso teto de placas metálicas. Meu avô me falava de sua chegada a Brasília e do encanto com a Rodoferroviária, que lhe parecera mais um aeroporto, de tão arrumada que era. Sempre reverenciava aquele teto ao chegar, antes mesmo de cumprimentar Telônio. Ele sabia que eu adorava o teto. Já havíamos conversado sobre isso várias vezes. No centro de um arranjo impressionante de equipamentos musicais cheios de luzes e botões, estava a linda esfera azul-Klein, em que vivia a mente computacional mais interessante que conheci. Nas galerias que encimavam os consoles do estúdio, jaziam centenas de instrumentos de um Orchestrion adquirido por mim junto à fundação que cuidava do legado do guitarrista Pat Metheny. Uma meia dúzia de robôs limpava cuidadosamente aquelas relíquias, sempre conforme a orientação de Telônio, que fazia questão, quando da minha presença, de falar com eles, embora pudesse, obvia e simplesmente, trocar sinais de rádio. Ele queria que eu o ouvisse comandando a equipe. Queria que eu soubesse que ele cuidava daquele patrimônio.
– Trouxe minha encomenda?, perguntou.
– Sim, claro. Foi mais fácil do que imaginava. Os Estados Unidos estão numa crise complicada. As pessoas buscam formas de levantar dinheiro. Estão mais dispostas a negociar.
– Você conseguiu falar com o pessoal de New Orleans?
– Consegui. O material deve chegar na semana que vem. Você vai ficar de cara com a qualidade da madeira. É um lote de análogos, com certeza. Do jeito que você queria.
– Que maravilha. Meus luthiers estão babando aqui. Estamos com o projeto do Mingus parado por falta do timbre certo. Não consigo emular digitalmente. Tentei isolar o baixo em todos os discos, mas não teve jeito. Consigo reproduzir as linhas melódicas, a dinâmica, toda a pegada, enfim, mas não o som. Se eu tiver a madeira, vamos conseguir o som. Já pesquisei muito. Achei compêndios sobre como faziam os instrumentos. As colas, o tipo de metal usado para as tarrachas etc. Consegui descrição do estúdio, com os materiais da construção. Uma análise da gravação permitiu definir as medidas da sala, e vimos fotos dos microfones, que conseguimos comprar de uns colecionadores. Só falta a madeira!
– A madeira vem vindo. Não esquente. Mas, mudando de assunto, o Élcio anda nervoso. O que você está aprontando?
– Aquele é um filho da puta.
– O que é isso, cara? Respeite o colega!
– Filho da puta. Ponto final.
– Por que?
– Eu quero um corpo. Faz muito tempo. Um corpo bom. Essas porcarias que andam por aqui limpando não servem. Já me projetei neles e andei por aí, mas são muito imperfeitos, e não podem sair do complexo. Quero andar pelo mundo, viajar, comprar eu mesmo o material necessário para meus projetos. Quero beijar uma mulher! “Lips like sugar, sugar kisses…”, não é isso que diz o Stephen McCulloch?
– Essa é boa. Aquela guitarra sequinha! Faz aí, Telônio!
– hehehehe, tá fácil.
– Mas não haviam prometido o corpo?
– Sim, mas o china desconfia que, com o corpo, eu vou acabar picando a mula. Você sabe que tenho um bom advogado, não? Consegui ter minha própria conta bancária. Já comprei até minha casa. Vou morar na Espanha. E ainda vou namorar a Scarlett Johansson.
– Que é isso, cara?
– Isso é isso. Ou você acha que vou ficar aqui pra sempre, vivendo de elucubrações, numa masturbação mental infinita? Eu quero um corpo, cacete!
– Bom, eu tenho um corpo, mas ele anda falhando.
– Você bebeu demais. Esse é o problema.
– Espero ainda poder beber um pouco quando você tiver seu corpo. Mas, no mais, o projeto do Mingus está indo bem?
– Sim. Com o Orchestrion, eu consigo fazer muita coisa. Eu começo analisando as gravações. Falar é muito mais difícil que fazer! É algo muito intuitivo pra mim, por assim dizer. Eu rodo a canção e automaticamente desmembro tudo que for possível, ritmo, melodia, sons, interpolações, envelope e tudo o mais. Com o conjunto dessas informações, consigo inferir muita coisa que não aparece diretamente na gravação nem é citada nos materiais ou relatos referentes aos discos. Principalmente, desenho os instrumentos, o estúdio, o aparelho fonador de quem canta, o fôlego dos sopros e assim por diante. Com isso é que consigo reproduzir muito fielmente um certo músico e seu entorno. É assim que faço os remendos nos discos velhos ou emulo um artista, de modo a fazer com que, mesmo morto, participe de um disco contemporâneo. Daí, é so negociar com os representantes desses artistas e meter bronca. Isso dá dinheiro, meu velho.
– Eu sei. De quebra, ganho o meu também.
– Por falar em dinheiro, mandei um presentinho para você ontem, pelo seu esforço em me conseguir esses materiais.
– Não precisa, caramba. Eu faço isso por amor à arte.
– O amor à arte não paga sua saúde. Compre um fígado novo para beber comigo quando eu conseguir meu corpo. Não vai demorar.
– Um fígado novo custa caro.
– Você agora tem dinheiro para uns três, pelo menos. Pode beber à vontade.
Antes de partir, Telônio pediu que eu ouvisse uma demonstração das composições próprias de Telônio. Eu havia sugerido que ele ouvisse alguns discos do Frank Zappa, sobretudo Jazz From Hell, e ele os havia incorporado como influência. As composições eram furiosas e viris. O Orchestrion era o corpo que Telônio não tinha, e ele o usava com maestria. Tegudum, tegudum tegudum. Iiiiiiin Iiiiinn Tegudum, tegudum tegudum ticabum tegadum Iiiiin zoiinnnnn e tegudum tegudum dum dum dum Aaaaaammmm. Uma loucura. Havia ali um pouco de Keith moon e outro tanto de John Bonham. Não era mais Buddy Rich que mandava. Nem Elvin Jones. Solos, arpejos, contrapontos. As galerias pareciam vivas com todo aquele som. Era como se todos os robôs do mundo tivessem resolvido fazer uma jam session. E a música crescia, ganhava novas camadas.
– É isso, meu amigo. É isso. Agora vá embora. Vá. Agora. Já!, disse Telônio, enquanto a música crescia e crescia.
– Por que?
– Vá!!
Um som estrondoso foi se acumulando. Algumas notas foram se juntando para formar algo ameaçador. Frequências perigosas gargalhavam em uníssono, pratos zoavam ensandecidos, em semifusas. Tudo tremia em uma tremenda cacofonia. Um horror! Achei melhor obedecer.
– Você que dabe, Telônio. Mas, que diabo é isso?
– Vá embora!, cantou um coro de 60 vozes filtradas em medonho vocoder, enquanto algumas peças já começavam a despencar da galeria, juntamente com as peças de metal do painel que por um século haviam embelezado o teto do prédio.
Tudo vibrava como que em um terremoto, os graves em tremendo rumor. Gente e máquinas correndo e gritando em desespero ou dissonância cognitiva, com Élcio à frente, tentando acionar Alípio, sem sucesso, porque o Oschestrion e os alarmes encobririam qualquer voz naquele momento. De repente uma nova gama de frequências ganhou proeminência. Agudos cada vez mais agudos, até que o som sumisse, mas logo o chão começou a tremer, com o piso trincando Do lado de fora do vidro, parei brevemente para ver enormes rachaduras no chão, das quais afloravam cristais puríssimos. O rumor ia se dissipando, enquanto pedaços de teto e parede caíam ruidosamente. De longe, ainda se podia ouvir os instrumentos despencando da galeria em desarmônica sinfonia. A barulheira foi dando lugar a um silêncio igualmente horroroso.
A alguns metros de distância, ficava o escritório de Alípio, montado dentro de uma velha locomotiva que fazia a linha Brasília-São Paulo nos anos 80. Ele a havia metalizado, e aquela maravilha brilhava sob o sol como uma nave espacial. Do lado de dentro, com o ar condicionado no talo, olhava para os monitores em apática imobilidade, ao passo que fazia contas mentais para ver que rumo daria na sua vida.
Enquanto corria ao lado de Élcio rumo ao brilho metálico daquilo que havia sobrado do Estúdio Locomotiva, notei um sujeito estranho encostado na parede de concreto, a fumar um cigarrinho. Vi que me ele acompanhava e encarava. Depois de soltar uma longa baforada, fez uma saudação tocando a aba do chapéu e disparou na direção do imenso descampado que havia atrás do prédio, de onde, pouco depois decolava um pequeno drone para dois passageiros.
Sentado confortavelmente em minha sala de som, coloquei o segundo disco no SL1200 e me entreguei à harpa de Dorothy, agora interpretando Edith and the Kingpin, de Joni Mitchell. A escolha fora perfeita, porque a composição se prestava muito bem à harpa de Dorothy. Telônio se superava a cada arpejo, emulando com perfeição o estilo de Dorothy, que eu conhecia como poucos. Também notei que ele havia achado um jeito de manter a guitarra de Larry Carlton e de atenuar o timbre de baixo de Wilton Felder, pois eu havia comentado com o amigo que sempre me sentia incomodado com o stacatto em algumas partes da gravação. Telônio era, como boa máquina, retentivo nos detalhes. Ao conversar longamente com ele sobre essa pérola de disco que era The Hissing of Summer Lawns, havia dito que me encantaria ouvir um pouco mais piano elétrico na mixagem, e que preferiria um timbre com menos sino e mais sustenido em alguns casos. E era isso tudo que ouvia, arrepiado, em meu vinil.
Mas o que se ouvia eram pequenas e sutis mudanças. Dorothy e Joni, minhas musas musicais, dialogavam harmoniosamente, tanto quanto todos os maravilhosos músicos de estúdio registrados naqueles meros 180 gramas de plástico. Francamente, faltam-me palavras para descrever o que senti naquele momento. Telônio havia sido muito gentil em me presentear com aquele disco. Era uma máquina notável, meu amigo. Realizar todo o processamento necessário para gerar aquele disco era, em si algo já notável, mas o gesto…o gesto! Falamos de algo que só um amigo muito estimado e que muito estima poderia fazer. Enquanto apreciava a música e um bom vinho português, encomendei passagem para Madri e comecei a pensar em como seria bom rever meu bom e velho amigo Telônio.