Notas sobre palestra apresentada no Cubo Itaú em 15/04/2024, por ocasião do seminário Comunicando Fora da Bolha, organizado pelo Fórum do Futuro e pela Rede Soja Sustentável.
Por Mário Salimon
Por sua origem, e em definição de dicionário, comunicação é o ato de partilhar, trocar, tornar comum. Contudo, em nossa sociedade complexa, outros usos foram se firmando com o tempo. Conexão, quando falamos de vias ou sistemas hidráulicos; distribuição, sobretudo de informação; colonização de mentes, como acontece na propagação e manutenção dos sistemas ideológicos. Nos relacionamentos, ter boa comunicação é conseguir um entendimento comum sobre os fatos. Não é à toa que nos preocupamos quando a pessoa com quem vivemos nos diz que “não estamos nos comunicando bem”! E comunicação também tem a ver com construção de sentido comum, quando falamos em modelos colaborativos e de convivência mais avançados. Finalmente, pelo menos para este texto, a palavra comunicação também está associada à tecnologia, é claro, porque os últimos duzentos anos foram muito impactados por máquinas, pela eletricidade e pela eletrônica. Se você já teve que passar um dia sem seu celular, entende muito bem o que estou dizendo.
Mas tecnologia, na verdade, não é novidade. Há mais de dois mil anos, os romanos já tinham tablets e um modelo analógico de Rede Social. Eles trocavam piadas, faziam fofoca e discutiam negócios usando um pedaço de madeira com uma camada de cera. Esses tablets circulavam pelas casas do patriciado, levados pelos estafetas, e voltavam ao final do dia para casa do dono, onde a cera era derretida, e tudo começava de novo. Contudo, os recursos de então não permitiam a escala do fenômeno que a gente vê nos dias atuais. Era algo muito engenhoso, mas que não foi exatamente decisivo naquela cultura. Não levava a pontos de inflexão, como ocorre com a massificação da comunicação em tempo real.
Já a internet, que foi concebida há 60 anos e se popularizou há apenas 30, foi um jogo totalmente diferente. A internet criou um mundo imediato. E por imediato, entendemos em tempo real, porque os deslocamentos que nos dão a percepção da passagem do tempo não são mais necessários para muitas das nossas tarefas básicas. Mas o uso da internet foi, de início, ainda muito baseado em broadcasting, ou seja, na transmissão feita por poucos para muitos.
Por volta de 2008, contudo, um vagalhão tomou o mundo de assalto: as plataformas de redes sociais, que são um fruto da web dinâmica, baseada em bancos de dados, e os smartphones permitiram que cada receptor se transformasse em transmissor, e as trocas de informação alcançaram uma escala probabilística. Passamos a ter muito mais conversas de muitos para muitos.
Isso gerou, por um lado, uma redução brutal dos custos transacionais de troca de informação, mas, por outro, problemas significativos como uma cultura marcada pela fragmentação; dificuldade de validação da informação; vício cibernético; isolamento social; bullying cibernético e cancelamento. As marcas passaram a ser estruturas abertas e muito mais facilmente atacáveis. Também vemos, nas conversações, uma forte tendência à radicalização e polarização, além da algoritmização e artificialização dos conteúdos.
Apesar de tanta informação disponível e barata, nossos problemas históricos seguem sem solução: fome, doença, desigualdade e escassez artificial são pragas que nos atormentam quase que permanentemente. É uma permacrise com a qual não temos sabido lidar, já que consumir muita informação não necessariamente significa saber como usá-la bem. Afinal, informação não é conhecimento.
Vejamos alguns números. Uma pessoa bem conectada consome mais de 30Gb de dados por dia em textos, áudio e imagens. Um número impressionante. E nossa capacidade permite processar ainda mais que o dobro disso: 74 GB. Algo como ver todos os episódios de Game of Thrones em um só dia! Contudo, 24 horas depois, já esquecemos cerca de 70% disso. Então, há uma pressão cognitiva muito grande para uma retenção relativamente baixa. Aprendemos pouco do muito a que somos expostos. E, do mesmo modo, sabemos que a ciência molda a sociedade a partir de informação, mas muito do conhecimento por ela produzido jamais chega a gerar aprendizagem na sociedade em geral.
Enfim, não estamos sabendo como comunicar oferta de conhecimento de interesse social com a demanda. Pelo menos, não do mesmo modo como conseguimos nos comunicar para vender celulares e sinal de internet. Um grande problema, sobretudo se considerarmos que os sistemas que sobrevivem são aqueles que aprendem e se adaptam.
O que nos falta? O que conecta os fragmentos de um sistema, seja ele comunicacional ou reprodutivo, são propósitos. Se fôssemos capazes de definir, como espécie, nossos não-negociáveis em termos do que significa ser humano, poderíamos usar nossa capacidade de aprender com um foco muito mais preciso. Isso geraria uma convergência de atenção e energia que certamente nos colocaria num patamar mais alto de desenvolvimento.
Contudo, grande parte das conversações que mantemos no mundo digital tem a ver com identificação e polarização. As pessoas se identificam pelas diferenças em relação às outras, e as peculiaridades vão sendo amplificadas em detrimento daquilo que temos de parecido. Vem daí a polarização, que tanto estrago nos tem causado. Pouco usamos essas novas ferramentas para a construção de sentidos comuns.
E por que não conseguimos construir esses sentidos comuns? Porque nosso modelo predominante de comunicação é o da verticalização da informação. É, como já disse, um modelo de venda. O mesmo que se usa para vender sabão em pó ou tênis. Ao invés de exercitarmos a curiosidade juntos, buscando soluções consensuais para nossos problemas, elaboramos nossos exércitos de argumentos pessoais e partimos para colonizar a mente do resto das pessoas com o que pensamos ser certo.
Esse modelo de broadcasting é muito típico das redes centralizadas. Nele, não existe muita troca! Isso porque o objetivo, quase sempre, não é o empoderamento de sujeitos, mas a manutenção das assimetrias de poder. Temos um entendimento quase que natural de que precisamos ter controle do futuro para sobrevivermos, de modo que canalizamos nosso recurso para programar o mundo, na medida do possível, de modo a responder às nossas necessidades em prejuízo das dos demais.
É importante assumir esse grave defeito de origem se houver qualquer pretensão verdadeira de se mudar o status quo. Se queremos um novo modelo comunicacional que saia da bolha, que faça efetivamente uma diferença, teremos que olhar para o modo como vemos nossos públicos para que deixem de ser apenas receptores de informação e passem a ser contrapartes em um processo de construção de seja lá o que for que pretendemos criar de novo. Conversar, ouvir e considerar são palavras-chave nesse novo arranjo que embasa tudo que estamos propondo aqui!
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