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Comunicação Intergeracional: uma travessia difícil, mas fundamental para a construção de um futuro sustentável

Foto do escritor: Mario SalimonMario Salimon

Imagem gerada pela IA Dall-e

Originalmente publicado no livro As soluções sustentáveis que vêm dos trópicos, editado pelo think tank Fórum do Futuro.

Por Mário Salimon*


Em maio deste ano, conseguimos algo muito raro no mundo dos projetos de interesse público: um importante banco de fomento aceitou financiar uma iniciativa em fase incipiente, apostando em nossa capacidade de levantar meta-conhecimento a partir de fontes primárias, num processo de “concertação” social. Falando em português claro, resolveram nos pagar para que fôssemos aprender sobre os problemas vividos em uma comunidade próspera e emblemática no mundo do agro brasileiro. Queríamos quebrar o gelo entre as pessoas e fazer emergir questões importantes para a geração futura de um Polo Global de Bioeconomia capaz de ter amplo efeito demonstrativo. A iniciativa ia bem de início, mas teve logo problemas muito significativos de comunicação.


Animados com esse importante voto de confiança, fomos a campo formar o grupo de trabalho ideal para o projeto. Sabíamos que seria fundamental buscar uma ampla representatividade, seja setorial ou identitária, de modo que recorremos à nossa rede profissional para trazer, pela via do Terceiro Setor, as peças-chave para a validação do nosso coletivo. Ambientalistas, mulheres, jovens e membros de comunidades indígenas poderiam nos dar a amplitude de escopo que entendíamos ser necessária para garantirmos a robustez das análises. Pensávamos também que nossa oferta soaria bem aos convidados e convidadas, porque lhes daríamos, como contrapartida, a chance de colocarem seu DNA num projeto inovador, além de oferecermos a chance de ampliarem sua contribuição relativa em projetos somente viáveis em ações conjuntas.


O fato é que quebramos a cara. Pensávamos que nossa proposta seria obviamente compreendida, mas menosprezamos as dificuldades advindas da comunicação em grupos complexos. Não somente tivemos baixa adesão, como vimos, logo de início, a saída dos poucos representantes do ‘’Terceiro Setor’’ que haviam aceitado participar do grupo. A inimizade funcional e as dificuldades de comunicação inviabilizaram muito rapidamente nossa construção ideal. Não é por estarmos no mesmo aqui e agora, falando a mesma língua, que conseguimos nos entender.


Felizmente, pudemos contornar as dificuldades graças ao poder da fenomenologia das redes, pois uma das universidades participantes do processo fez a ponte com as comunidades faltantes no grupo, de modo que sua contribuição pôde ser satisfatoriamente incluída no trabalho final. Contudo, esse processo gerou certa amargura, levando-nos a reflexões e especulações que tratamos de compartilhar neste artigo.


A ideia de ‘’Terceiro Salto’’ proposta por Alysson Paolinelli nos leva a um conjunto significativamente complexo de necessidades de interação e comunicação. Se a ideia é não gerar uma tonelada de expectativas frustradas, temos que admitir que não seria trivial organizar, disseminar e verificar a percepção das centenas — senão milhares — de conceitos e definições necessários para compor a visão de uma nova sociedade capaz de transcender o modelo agroalimentar atual. Em termos de processo, sabemos que, antes do salto, haverá muitas travessias, para as quais teremos que construir pontes e mais pontes.


Temos imensos desafios pela frente, mas desejo, neste artigo, colocar foco na comunicação, entendida aqui como construção de uma das mais importantes pontes: a intergeracional, que liga o agora e o porvir. E, para que isso seja viável, temos que falar sobre a dificuldade de comunicação entre jovens e velhos. São genéricos e duros esses termos, mas usar qualquer categorização diferente relativizaria e eufemizaria, de imediato, a discussão que realmente interessa, posto que a percepção que temos nas conversas é que raramente existe um meio-termo. A despeito de nossas idades, estamos sempre percebendo o outro e sendo por ele percebidos como parte de uma das duas categorias.


Em suma, é um exercício subjetivo, que nos leva a diversos tipos de comparações assimétricas e a preconceitos que, no final das contas, prejudicam o entendimento entre os que supostamente — e aí está o maior dos preconceitos — já foram e os que ainda virão a ser. Factualmente, os mais velhos estão cerceando a opinião dos mais novos por vê-los como lacradores, enquanto estes cancelam aqueles por serem datados. E todos perdem, porque esse comportamento os impede de ver a vida como o continuum que realmente é.


Este texto pretende especular livremente sobre essas dificuldades de comunicação entre jovens e velhos. Longe de ser uma abordagem científica, trata superficialmente de questões que têm emergido com frequência em tentativas de gerar representatividade geracional em nossas atividades de consultoria de gestão de estratégia. Para reduzir o inevitável viés de autoria, já que tenho 59 anos de idade, pedi que meu filho Luís e as filhas Ana Paula e Marina, hoje entre 22 e 30 anos, falassem livremente sobre as dificuldades que têm em suas relações com os mais velhos. Também ouvi minha enteada Gabriela, que, num recente almoço de família espontaneamente completou o quadro que eu vinha pintando. As ideias daquela que chamo de “ala jovem” estão, quando não nominalmente citadas, bem representadas nas análises que farei mais adiante.


OS PRESSUPOSTOS

Nunca é demais dizer que comunicação é muito mais que transmissão bilateral de informação, ainda que esta noção ainda impere nas instituições, as mais variadas, inclusive as famílias. A definição que nos interessa tem mais a ver com a construção de sentido comum, motivo pelo qual é fundamental se considerar o feedback com sendo o passo adiante, o ponto de inflexão a partir do qual temos reais chances de transcender a confusão gerada pelos ruídos e pela sensação de impotência diante do que o outro diz.


Assim, a opinião do receptor sobre o que diz o emissor é a chave para a verificação de percepção do que foi dito. Mais que isso, instrui o emissor, desde que haja a devida abertura, no sentido de mudar sua própria visão sobre os conteúdos trocados. Não é possível construir relações assertivas e democráticas sem o efetivo exercício do processo aqui conceituado. Sem esse esforço, nossas pontes ruirão antes mesmo de chegarmos à metade da construção.


Também seria importante estabelecer que a comunicação pode ser vista como processo e produto. No primeiro caso, falamos de uma construção dinâmica de sentido, marcada por atos, gestos e verbalizações, mas também pela inação e pelo silêncio, que são, muitas vezes, tão ou mais significativos que seu contrário. No segundo, temos o efeito do processo, que reverbera em comportamentos e desenvolvimento de culturas. Sendo efeito, a comunicação-produto é um importante indicador da qualidade dos processos e, como a comunicação entre jovens e velhos se mostra muito ruidosa, podemos afirmar que o processo é ineficiente e não nos levaria a bom porto, sobretudo porque devemos considerar que as mudanças tecnológicas em curso tornarão o contexto — que se configura como pano de fundo dos processos cognitivos — ainda mais complexo e fragmentado. Assim sendo, parto para a apresentação e breve discussão de temas que surgiram nas conversas e investigações que resultaram neste artigo exploratório.


O FATOR TECNOLÓGICO

Existe uma crença geral de que cada novo desenvolvimento tecnológico aumenta a distância entre gerações por conta de fatores cognitivos e motores. Porém, as técnicas de design vêm se concentrando na ideia de funcionalidade centrada no usuário, de modo que pessoas mais velhas vêm se adaptando mais facilmente aos novos sistemas operacionais e interfaces. Uma prova disso foi a adesão massiva delas aos smartphones, que possuem interfaces muito mais amigáveis que os computadores de mesa ou laptops. É muito provável que a popularização dos assistentes digitais comandados por voz mudem radicalmente a relação dos usuários com suas máquinas, reduzindo muito os obstáculos cognitivos e motores impostos pelos atuais métodos de interação com dispositivos computacionais. Assim sendo, esse fator não necessariamente se configuraria como um problema determinante de separação digital de jovens e velhos.


Contudo, os dispositivos e suas interfaces são um dentre vários aspectos dessa nova ecologia digital surgida com os smartphones e plataformas de redes sociais. Existem ainda questões como territorialidade e linguagem. Minha filha Marina tem 22 anos e é linguista, recém-formada pela Universidade do Porto. Provocada a refletir sobre o tema deste artigo, ponderou que as mudanças radicais nas tecnologias criaram uma condição em que, muito embora possamos — pais e filhos, por exemplo — estar no mesmo espaço físico, acabamos vivendo em mundos que podem ser completamente diferentes. Configuram-se, a cada momento, nos espaços virtuais, miríades de novos territórios, com seus próprios personagens, cenários e vocabulários. “A gente cresceu em outro mundo, como se fosse outro país, sabe? E essa diferença afeta muito a produção linguística”, afirma minha caçula.


PANO DE FUNDO

Como desdobramento dessas novas territorialidades e culturas, surgem novos sistemas de valores e visões de mundo. Ana Paula é minha filha do meio. Aos 24 anos, é designer gráfica e trabalha virtualmente em três países diferentes. Quando pedi que discorresse, sem papas na língua, sobre o que a incomodava na comunicação com os mais velhos, disse que “a geração mais velha tem crenças que já estão muito sedimentadas, calcificadas. É mais difícil de você atravessar isso”. Não seria questão de uma geração estar certa e a outra errada, mas de os novos serem, ainda que não necessariamente mais flexíveis, mais abertos à atualização. Por essa diferença, segundo Ana, haveria diferenças significativas no pano de fundo das conversações, um fator importantíssimo para o desenvolvimento de uma comunicação assertiva e não ruidosa.


Note-se que ela e Marina falam de um problema muito sério. Como é que poderemos nos comunicar eficientemente se os elementos fundamentais de constituição e disseminação de mensagens — o código e a cultura — estão em acelerado deslocamento? Mais que isso, há ainda o problema da frequência das conversações. Hoje, a visibilização de conteúdos on-line é ditada por modelos algorítmicos que fazem com que duas pessoas conectadas por uma mesma plataforma vejam conteúdos completamente diferentes. Ana Paula também nota que, como os algoritmos são alterados conforme o uso dos sistemas, e os jovens tendem a se comunicar mais virtual do que pessoalmente, as conversações intergeracionais — menos comuns — serão sempre defasadas em relação àquelas conduzidas entre pessoas da mesma faixa de idade, que se comunicam com a mesma frequência.


PRAGMATISMOS E RESSENTIMENTOS

Temos um entendimento quase que natural de que precisamos ter controle do futuro para sobrevivermos, de modo que canalizamos nossos recursos para programar o mundo, na medida do possível, de modo a responder às nossas necessidades em prejuízo das dos demais. Isso faz com que, na educação das novas gerações, façamos um esforço enorme para colonizar o futuro com ideias do passado. Desde que os sumérios criaram o primeiro zigurate, verticalizando a sociedade em quase todos os seus aspectos, gerou-se uma anisotropia, uma distorção do campo social em que os que estão em cima ou vieram antes sabem, podem e têm mais que os que os sucedem.


Essa deformação não passa despercebida pelos jovens, que se ressentem da insistência dos mais velhos em moldar as novas gerações conforme um mundo que não é mais viável. Marina diz que as novas gerações não aceitam nosso entendimento sobre o que seria desejável para eles em termos de funcionalidade para a sociedade, porque “a gente não conquista as mesmas coisas na mesma idade, não segue os mesmos caminhos para ter sucesso”. Na opinião dela, isso estaria gerando uma perda de autoridade dos mais velhos e até “uma certa falta de respeito” dos mais novos por eles. Gabriela trouxe à baila outra questão relevante sobre hierarquia. Para ela, nós, os adultos, não somente tendemos a direcionar muito a ação dos mais novos, mas também temos a mania de ver o copo sempre meio vazio ao invés de meio cheio, o que seria muito desestimulante para quem se esforça para aprender e construir sua própria concepção de mundo.


Os que estamos, hoje, no poder, prometemos aos jovens um mundo melhor. As gerações nascidas nos anos 90 foram criadas com a perspectiva de um mundo mais livre, sem guerras e sem inflação. A queda do Muro de Berlim seria um marco simbólico desse novo tempo. Os jovens também imaginaram que o que liam em seus livros didáticos sobre o meio ambiente seria levado em conta pelos que controlam o mundo. Ressentem-se por estarem vendo que fomos bons de conversa, mas não necessariamente de gestão. Por que haveriam de aceitar nossas determinações? Por ser oportuno, cito o biólogo Humberto Maturana, que bem falou sobre o determinismo em nossas vidas: “Quando nos encontramos com um adivinho profissional, que nos promete, com sua arte, predizer o futuro, em geral experimentamos sentimentos contraditórios. Por um lado, nos atrai a ideia de que alguém, olhando para nossas mãos e baseando-se num determinismo para nós inescrutável, possa antecipar nosso futuro. De outra parte, a ideia de sermos determinados, explicáveis e previsíveis nos parece inaceitável. Gostamos do nosso livre-arbítrio e queremos estar além de qualquer determinismo.”


TOKENISMO E CANCELAMENTO

Não são poucos os ressentimentos. As mudanças sociotécnicas ocorridas nos últimos quinze anos foram disruptivas e complicaram o generation gap já existente entre os que viveram os efeitos da contra- cultura e os que já nasceram e cresceram numa sociedade imediata e digital. Por um lado, a cultura do etarismo desvaloriza os mais velhos, vistos como ideologicamente datados e ineficientes no jogo digital e, por outro, a assimetria histórica das relações matriarcais e patriarcais coloca os mais novos em inferioridade, como se fossem somente despreparados e imaturos. Os mais velhos insistimos em ver os mais novos como rascunhos de gente, projetos ainda por serem desenvolvidos — e, pior de tudo — conforme um olhar que lançamos pelo retrovisor. Por outro lado, os mais novos nos veem como uma fotografia desbotada, um iPhone do ano retrasado. Acaso aquele aparelho não teria sido a mais avançada versão disponível quando lançado? Não haveria ainda muito que aproveitar das capacidades daquele iPhone? Afinal, vemos e aproveitamos, tanto das pessoas como dos iPhones, uma ínfima parte de suas potencialidades!


O fato é que estamos todos pouco abertos ao diálogo. Os mais velhos somos acusados de provocar, mas não considerar, as opiniões dos mais novos porque seriam vistos como “militantes ou lacradores”, como apontou Ana Paula. Já os mais velhos são acusados de tokenismo — situação em que representantes de grupos minoritários são convocados apenas figurativamente a participar de processos políticos –, sendo, por consequência, cancelados e evitados nas conversações. Perdem todos no final das contas. E o que podemos fazer?


SOCIALIZAÇÃO E AFETIVIDADE

Meu filho Luís Adriano é jornalista. Está com 29 anos e, em suas considerações, por duas vezes comentou que, como estava ficando mais velho, começava a entender o outro lado. Segundo ele, as diferentes gerações têm modos diferentes de interagir, sendo que os mais velhos tendem a ser mais “quadrados”, formais, e a praticar mais small talk, aqueles introitos que precedem os assuntos ditos sérios. Essa forma mais afetiva seria diferente da dos jovens que, “por serem ansiosos, tendem a ir direto ao assunto de interesse deles ou do grupo”. A afetividade parece ser a chave que abre as portas da comunicação assertiva.


Luís conta que, embora reconheça as dificuldades de relacionamento entre as gerações, no caso dele os problemas parecem ter sido atenuados pelo fato de os pais o terem colocado sempre em contato com tios e avós, gerando um convívio rico em memórias afetivas. Essa interação gerou o que Luís chama de um “jeito familiarizado” de se relacionar com os mais velhos.


Tal afirmação conduz à ideia de que temos que investir, como sociedade, em formas de interação que favoreçam laços de afetividade e a solidariedade entre gerações. Sabemos que os desenvolvimentos demográficos decorrentes do aumento da expectativa de vida se articularão com fatores econômicos e ambientais, forçando o convívio entre diferentes gerações de adultos. A elas caberá decidir se competirão ou cooperarão por recursos, mas sabemos que a comunicação assertiva será um elemento crítico na definição da qualidade dessas relações e do tipo de humanidade que dela resultará.


CONCLUSÃO

O jogo de poder nos processos de comunicação tem, hoje, novas regras. Cada receptor de informação, também um emissor, vê o mundo por suas próprias lentes e tende a representá-lo conforme os filtros por elas criados. A capacidade de convencer e mobilizar a sociedade a transitar no sentido de algo novo e disruptivo sempre demandou e demandará uma estratégia muito cuidadosa de comunicação. Ela deve ser suficientemente amarrada a ponto de gerar coerência dos conteúdos, mas, ao mesmo tempo, minimamente flexível para comportar as peculiaridades dos diferentes atores, mensagens, canais e produtos. Sem pontes sólidas, a travessia será, senão impossível, muito complicada.


Apesar da vasta disponibilidade de informação, não tem sido possível compartilhar, entre gerações, uma visão longitudinal das conquistas e desafios vividos pelo Brasil em seu processo de crescimento, democratização e enfrentamento da permacrise socioambiental e econômica que nos aflige. Se desejamos construir projetos de futuro sustentáveis, precisamos viabilizar, perfeccionar e amplificar o diálogo intergeracional, para que as distintas fases da vida se vejam valorizadas e aproveitadas em suas distintas potencialidades de contribuição e transformação cultural.


*Mário Salimon é consultor especialista em gestão da estratégia e transformação organizacional, Mestre e Doutor em gestão pela Universidade de Brasília.

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