Seleção Blog Caminho do Careca (feita por Tina)
Considerando que o que ele publicou foi o que passou no próprio crivo de qualidade, e que o que estava no blog foi tornado público pelo desejo dele, a fonte não poderia ser melhor. Diferentemente de achados em gavetas esquecidas, estaremos publicando algo que o Marden considerou bom o suficiente para ser mostrado.
Considerando a variedade de assuntos, achei que aquilo que se relaciona bem com o tema da ficção científica clássica são estes selecionados aqui.
A Arma Zeta é bem maior do que eu me lembrava. Os outros contos podemos discutir se se encaixariam na unidade do livro Sci-fi.
Encontrei um livro infantil pronto, lindo, (que eu adoraria ilustrar). Vale publicação, talvez como e-book.
Tem outro livro de crônicas, com ótimas críticas ao cotidiano, muito engraçadas. Ele era muito original.
E ainda outros escritos sobre a arte de escrever e o sofrimento do autor na produção literária. Nestes o Marden deixou claro o seu compromisso com a literatura e a angústia de buscar o melhor. Fala ainda da disciplina da produção diária, das suas influências e referências e da luta entre o cotidiano de pai responsável e a paz necessária para o escritor conseguir produzir. Essa parte é tocante, talvez por nos identificarmos com ela. Não entra nesta proposta de livro, mas interessa a quem admira o ofício.
Uma delícia trabalhar com na seleção. Pena que estejamos numa fase tão corrida da vida. Gostaria de dar mais tempo a projetos assim. No ambiente adverso que país atravessa, ter artistas como vocês insistindo na lida de semear e nutrir a Arte é admirável. Obrigada por isso, querido.
O que está em vermelho é o que seria cortado do texto dele. Veja se concorda, por favor.
A Arma Zeta
Durante dez anos a Arma Zeta ficou na mesa da sala de casa servindo apenas como enfeite de mesa. Era pequena, cabia na palma da minha mão. Era mesmo bem parecida com um revólver, mas não tinha gatilho e nem um buraco para que as balas saíssem. Não havia motivo para considerá-la perigosa. Parecia mesmo bem inofensiva. Tinha gente que pensava que era um velho isqueiro.
Não me lembro de como estava o dia quando a encontrei. Deveria haver algum tipo de aviso, como no cinema, quando as coisas especiais acontecessem. Deveria haver uma música incidental que subisse de repente, uma imagem estranha acelerada, um efeito visual, lobos uivando, corujas no ar, qualquer coisa, mas não me lembro de nada disso acontecendo quando encontrei a Arma Zeta. Não me lembro nem qual era o dia da semana. Acho que foi num dia qualquer em setembro, mas pode ter sido em outubro ou novembro. Talvez estivesse ventando, mas onde eu moro as ventanias são comuns. Não chegam a formar tornados, só uns redemoinhos meio chinfrins. Mesmo assim, acho que não estava ventando muito forte quando a encontrei.
Na verdade, eu ainda nem a chamava de Arma Zeta. Parecia mais um velho revólver de brinquedo com defeito. Era colorido como aquelas armas de Flash Gordon que a gente vê nas revistas antigas e talvez por isso eu a tenha guardado. Achei que podia valer alguma coisa. Naquele tempo eu estava sempre atrás de dinheiro e procurando um jeito de arrumar uns trocados. Não é que fôssemos pobres. A grana era curta, contada. As pequenas sobras eram poupadas em cofrinhos, potes ou vasilhas de louça insuspeitos que nunca iam à mesa.
Eu estava andando na calçada e praticamente tropecei naquilo. Eu a encontrei sobre uma sacola, no meio da calçada da rua perto de onde morávamos, junto a peças de roupas que poderiam ser de qualquer pessoa(jeans, camiseta, um par de óculos, meias e tênis). Não me lembro se havia roupas íntimas, acho que não, ou isso certamente teria me levado a algum juízo sobre o sexo da última pessoa portadora da pistola de raios. Havia também uma aliança, com as iniciais VC gravadas. Se eu soubesse que era a Arma Zeta, capaz de fazer desaparecer um ser vivo, talvez tivesse intuído que o antigo proprietário teria se auto-desintegrado em plena rua. Mas só fui pensar nisso anos mais tarde, quando achei que já era tarde demais.
A Arma Zeta teria permanecido mais alguns anos como sendo apenas um enfeite de mesa em minha casa se não fosse por uma estranha visita que recebi, quando eu estava perto de completar 18 anos. Daquela vez parecia mesmo que uma coisa especial estava acontecendo. Chovia e fazia sol, ventava forte e havia redemoinhos por todos os lados. Os cachorros latiam nas ruas, pássaros voavam em todas as direções, meu peixinho dourado pulou para fora do aquário. Por algum motivo, eu estava sozinho naquela tarde. Quando a campainha soou eu acabava de devolver o peixe para o aquário e corri para atender a porta. Mas antes, olhei pelo olho mágico e vi uma das mulheres mais bonitas que eu já vi em toda a minha vida.
_Nossa Senhora! – eu disse, em voz alta.
_Não, sou eu, Brigite – disse a mulher.
Ventava uma barbaridade, embora ela estivesse no corredor do prédio de apartamentos. Abri a porta rapidamente para que Brigite entrasse, mesmo depois de ter feito uma rebobinada rápida na memória e ter certeza de que não conhecia Brigite nenhuma.
_Obrigada, muito obrigada. Você deve ser o … – ela disse, enquanto estendia a mão como se estivesse acostumada com que a beijassem, com reverência.
_Sim, eu sou o … – e me inclinei para beijar aquela mão, que era mesmo muito beijável, enquanto tentava imaginar uma maneira de prolongar ao máximo aquele encontro improvável com uma mulher bonita.
Aqui eu tenho que fazer uma pausa e explicar que eu sou um cara feio. Sim, existem diversos graus de feiúra e certamente não sou o sujeito mais feio do mundo. Mas estou lá na rabeira da fila de pessoas aquinhoadas com alguma forma de beleza. Sempre soube que as mulheres muito bonitas, com raras exceções, também são muito vaidosas e não gostam da companhia de homens feios. A não ser, é claro, que o feio em questão tenha alguma forma de satisfazer a vaidade da bela mulher vaidosa, seja com sua inteligência, riqueza, poder, força, virilidade infalível ou tudo isso junto. Infelizmente, eu não tinha nenhuma dessas qualidades, mas Brigite continuava a me olhar como se eu fosse uma espécie de escolhido.
_Você é o Roberto, não é? – disse Brigite.
Roberto era o meu vizinho. Aquilo vivia acontecendo. Eu morava no 506 e o Roberto era um coroa que morava no 509, que ficava no outro lado do corredor. Um engraçadinho havia arrancado os números finais dos apartamentos e as confusões e enganos ocorriam com muita frequência.
_Não, infelizmente eu não sou o Roberto. Somos vizinhos. O apartamento dele fica em frente, no final do corredor – eu disse, começando a explicar que alguém havia roubado os números e que muita gente se confundia.
Brigite não escondeu a decepção. Ela fechou o sorriso e retirou a mão que eu ainda segurava tolamente, pensando em francês aquelas coisas que o gambá Pepe LeBeau diria com sotaque e muita classe. Eu ainda tentei oferecer alguma coisa para que ela ficasse mais alguns segundos, mas ela saiu rapidamente se desculpando. Quando fechei a porta e olhei pelo olho mágico aquela bela criatura se movimentando pelo corredor, vi que ela remexia a bolsa, de onde retirou um objeto que me pareceu familiar. Roberto a convidou para entrar rapidamente e antes que fechasse a porta olhou para o corredor com cuidado, como para se certificar de que não havia ninguém por perto a vigiar. Eu era o único, mas não havia como ele saber disso. Seja como for, aquela foi a última vez que eu vi Roberto.
Roberto havia sumido mas eu ainda não tinha como saber disso. Não éramos amigos e eu o via raramente. Ele costumava passar longos períodos fora do apartamento, em viagens a trabalho. E eu não sabia nada sobre o que ele fazia. Na verdade, nunca havíamos trocado mais do que alguns cumprimentos na portaria, ao entrar e sair do elevador. Assim, eu só fui perceber que ele havia mesmo desaparecido alguns meses depois, quando voltava de um baile de Carnaval e vi outras pessoas no seu apartamento. Mais especificamente, vi Manoela vestida de índia, de tomara-que-caia e tanga de penas, cocar, arco, flechas, colares e pulseiras. Estava animada, dava pulinhos com os braços para cima. A-lá-lá-ô!
Aquele sorriso. Ver Manoela fez soar címbalos, tambores africanos, o grito original de Johnny Weissmuller, chocalhos, trombetas e um clarim em meus ouvidos. Era uma experiência multissensorial, sinestésica, dava água na boca e um aperto no coração. Naquele instante eu percebi que a paixão à primeira vista é um fenômeno que jamais poderá ser compreendido em sua plena magnitude e que nunca poderá ser induzida em laboratório, mesmo que se consigam estabelecer condições ideais de temperatura e pressão. A paixão à primeira vista só pode ser sentida. É uma epifania. É como acordar de madrugada em estado de pura alegria pelo simples fato de estar vivo. É o sentimento que estará sempre além de qualquer palavra, mesmo as engenhosamente organizadas em poemas sussurrados por anjos. É um raio. É pau. É pedra. É o fim do caminho. Manoela brilhava envolta em confete e serpentina e ao vê-la assim tão linda, desmaiei.
Um observador malicioso poderia dizer que eu desmaiei de forma calculada. Mas se isso aconteceu, foi o meu inconsciente que fez todos os cálculos e planejou tudo sozinho. Eu acordei sem saber de nada no sofá da sala do antigo apartamento do Roberto, que depois eu viria a saber que era da família de Manoela. E essa pessoa que agora tentava me afogar com um copo d´água, sem noção do que estava fazendo, eu viria a saber que era o seu Alencar, pai de Manoela.
_Está vivo, não disse? Se esbaldou no carnaval e veio desmaiar na porta de casa – ele disse, triunfante, para a filha. Eu sorri também, ainda grogue, para Manoela.
_Como é o seu nome? Onde você mora? Está sentindo alguma coisa? – disse Manoela.
Eu sorri novamente tentando lembrar qual tinha sido a primeira pergunta e organizando as respostas na ordem correta, mas quando abri a boca eu me confundi todo.
_Sinto muito. Aqui mesmo, no final do corredor – eu disse, apontando para o coração e depois para a porta aberta. Um reflexo forte me chamou a atenção. Ali, bem na frente do meu nariz sobre a mesa da sala do apartamento, brilhava uma coisa muito parecida com o meu velho revólver de brinquedo achado na rua. Minha surpresa foi ainda maior quando, vindo da cozinha, surgiu a mulher que meses antes havia procurado pelo Roberto.
_Não falei, Alencar? Eu te disse, Manoela! É o nosso vizinho que mora no outro lado do corredor.
Naquele Carnaval eu estava fantasiado de Baixim, o Fradinho baixo, sádico e sarcástico criado pelo Henfil. Claro, na rua ninguém sabia disso, só achavam que eu estava com uma roupa muito quente. E era mesmo muito quente, mas não foi por isso que eu desmaiei. Desfaleci pela visão da bela Manoela, coisa que naquele instante não era conveniente admitir.
_Então, o que aconteceu? – perguntou a mãe de Manoela.
_Quando?
_Agora. Encontramos você caído no corredor e tivemos um enorme trabalho para arrastá-lo até o sofá. O mínimo que você poderia fazer é nos dizer o que aconteceu. Você é cardíaco? Diabético? Sofreu uma insolação? – disse a mulher.
Uma pessoa bonita pode parecer ser mais antipática que uma pessoa com quem não esperamos criar algum tipo de empatia. As pessoas com boa aparência estão acostumadas a presumir que receberão mais atenção e consideração do que uma pessoa desprovida desses atributos. Naquele dia eu deveria estar um pouco grogue, porque apenas agradeci e pedi desculpas pelo trabalho e voltei rapidamente para casa. Mas antes, é claro, apertei a mão do Seu Alencar e me apresentei para a família.
_Antônio. Obrigado, mais uma vez e desculpas novamente pelo trabalhão.
Assim que entrei em casa fui até a mesa onde o brinquedo costumava ficar e, para minha surpresa, descobri que a Arma Zeta havia desaparecido.
Ao voltar pra casa, fiquei pensando alto. Vejamos. A Arma Zeta havia desaparecido. Não, eu não pensei isso, porque a Arma Zeta não significava nada para mim, eu ainda não sabia que aquele enfeite de mesa poderia disparar raios desintegradores. Eu não sabia de nada e era Carnaval. Então se eu não tivesse visto Manoela eu não teria desmaiado. E se eu não tivesse desmaiado, não teria sido levado até o sofá do apartamento do meu vizinho e visto um enfeite de mesa idêntico ao meu na mesa da sala dele. Também não teria visto a mãe de Manoela e reconhecido a mulher que me visitara por engano alguns meses antes, enquanto procurava Roberto, meu antigo vizinho.
Esse raciocínio me deixou com duas grandes dúvidas na cabeça. Por quê o meu enfeite de mesa estava no apartamento do vizinho? Quando poderia ver Manoela novamente? Eram perguntas não poderiam ser deixadas suspensas na retórica. Especialmente a segunda. Enquanto eu pensava nisso, eu vasculhava a sala em busca do enfeite de mesa, sem sucesso. Mas para minha surpresa, a campainha tocou e corri para atender a porta. Mas antes, é claro, olhei pelo olho mágico.
Era Manoela. Ela não estava mais fantasiada e mesmo examinando-a criteriosamente eu não sentia vontade de desmaiar. Ela continuava linda de camiseta branca e jeans, mas eu não sentia nenhuma vertigem. Ao invés de paixão, talvez tenha sido apenas um problema glicêmico qualquer, eu pensei. Abri a porta e ela me estendeu o enfeite de mesa.
_Oi. Está melhor? Esqueceu seu brinquedo lá em casa – ela disse, estendendo o que eu ainda não sabia que era a Arma Zeta.
_Ué, como isso foi parar lá? – eu disse.
_Estava com você, minha mãe encontrou no bolso da sua fantasia de padre – disse Manoela.
Eu disse bacana, ok, muito obrigado, você me ajudaram muito, enquanto eu verificava mais uma vez, só para ter certeza, de que não havia mesmo nenhum bolso na minha fantasia de Fradim. Manoela já havia dado uma volta completa na sala e iniciara uma revista pela cozinha e quartos.
_Você está sozinho? – ela disse.
_Estou. Meus pais foram passar o Carnaval na praia, eles não gostam mais de bagunça.
_Meu pai também não gosta. Mas a minha mãe é bem foliã, acho que ela gosta mais do que eu.
_Vocês estão saindo juntas?
_Não. Ela tem a turma dela e eu tenho a minha. A turma dela é meio barra pesada, os caras piram – ela disse.
_Como assim?
_São uns coroas muito malucos, eles se acabam – disse Manoela.
Eu tentei imaginar um bando de coroas pulando o carnaval, sem muito sucesso. Eu não tenho a menor idéia de como eles se divertem.
_Estou brincando, ela também fica em casa – ela disse.
_Onde você comprou? – ela apontou para o brinquedo na minha mão.
_Não comprei. Encontrei esse troço quando era menino. Parece uma daquelas armas de filme de ficção científica, não é?
_Você sabe como funciona?
_Não tem gatilho. Acho que nunca teve.
_Não precisa de gatilho – disse Manoela.
Mais uma vez, é preciso encontrar um jeito de introduzir música incidental em cenas da vida real. Naquele instante, eu deveria ter escutado o barulho do meu coração, tambores e cordas agudas, um violino vibrando bem alto, como acontece nas cenas em que subitamente aparece um tubarão, ou que o mergulhador percebe a existência de uma moréia. Manoela estava com o brinquedo na mão direita, mas ele agora parecia estranhamente metálico e sólido. A única diferença é que um pequeno orifício havia surgido na ponta do cano, bop.
_É melhor você se abaixar – disse Manoela.
Eu estava de rosto colado ao chão. O que aconteceu não durou mais que alguns segundos e eu ainda não conseguira entender tudo. Não houve explosão e nem barulho, a única coisa que senti foi uma vibração e no instante seguinte eu estava do outro lado da sala, como se uma onda tivesse se arrebentado nas minhas costas. Ainda deitado olhei para os lados esperando ver a sala destroçada, mas aparentemente tudo estava como antes.
_O que está acontecendo? – eu disse, olhando para os calcanhares de Manoela, à minha frente. De alguma maneira, eu havia sido atirado para trás de onde ela estava.
_Não sei ainda, fique quieto – disse Manoela.
Eu respirei fundo e fiz uma verificação rápida da situação. Eu não sentia dores, conseguia mexer os dedos, tinha a boca seca e não estava tonto. Estava com tremedeira de tanto medo e provavelmente precisaria tirar aquela fantasia de padre, trocar de roupa, mas não havia sangue e nem sinal de ferimentos.
_Caramba! Teve um tsunami nas minhas costas e você não viu? – eu disse.
_Quieto, eles estão em algum lugar à nossa frente – ela disse.
_Quem são eles? Só vejo calcanhares – eu disse.
Uma nova onda se quebrou à minha frente e desta vez eu senti como se alguma coisa se quebrasse atrás dos meus olhos. Parecia que milhares de pequenas fagulhas estavam fritando a minha cabeça por dentro, meus olhos ardiam. Quando os abri, tudo estava como sempre foi. Não havia nada pegando fogo, ninguém gritava, o silêncio imperava. A mesa, o sofá, tudo estava exatamente como antes. Subitamente eu percebi o que havia de errado: eu não via os calcanhares de Manoela.
_Eles já foram – disse ela, sentada calmamente na poltrona ao meu lado.
_Quem são eles? – eu disse.
_As pessoas que acabaram de tentar nos destruir – disse Manoela, ainda empunhando o velho enfeite de mesa como se fosse mesmo uma arma.
_E por quê alguém tentaria me destruir? Eu não sou ninguém – eu disse, lembrando de dois ou três filmes onde essa pergunta também é feita.
_Mas você tem uma dessas – ela disse, brandindo o velho brinquedo.
_Um revólver de brinquedo? Querem me destruir por um pedaço de lixo?
_Este “lixo” é a arma de todas as armas. É a Arma Zeta! – disse Manoela, os olhos brilhando.
Tive que rir. E teria gargalhado muito mais se, de repente, sem que eu soubesse como, minha fantasia não tivesse desaparecido.
Nunca tive problemas com a nudez. Ainda mais no Carnaval. Depois de algum tempo vendo tantos corpos descobertos, a gente acaba anestesiado. Mas é diferente quando você está fantasiado de frade e, sem mais nem menos, a sua roupa desaparece. Manoela ria, ainda apontando a Arma Zeta na minha direção. Eu tentava cobrir algumas partes, mas tinha a sensação de que estava vestido, embora não estivesse vendo as minhas roupas. No momento seguinte, minha fantasia voltara, colorida de rosa choque. Em seguida, eu estava vestido de índio, depois de lagosta, martelo, vaca, cachorro, gato, galinha, bode e tubarão.
_Espere aí, eu também quero brincar com isso – eu disse.
Manoela parou de rir e me encarou muito séria.
_Isto não é um brinquedo. Levei muito tempo para aprender a mexer com uma Arma Zeta. Além disso, só eu posso usar esta aqui. Ela é minha – disse Manoela.
_Moça, você está de brincadeira. Eu achei essa coisa tem uns 10 anos, não pode ser sua – eu disse.
_Foram 9 anos, onze meses e treze dias.
_Tudo bem. Tudo bem. Eu não quero brincar com essa coisa. Mas se ela é sua, por quê demorou tanto para pegar de volta?
_É uma longa história – ela disse.
_Eu tenho tempo, desde que você me devolva a minha fantasia de frade – eu disse.
A troca aconteceu num piscar de olhos. Ela esperou eu me sentar antes de começar a me contar o que havia acontecido 9 anos, onze meses e treze dias antes que eu tocasse pela primeira vez na Arma Zeta.
Ela respirou fundo e disparou. Eu agora usava um smoking.
_ O artefato Zeta foi encontrado pelo meu trisavô durante a Guerra do Paraguai – disse Manoela.
_Ah, conta outra, vai – eu disse.
_Meu tio-avô trouxe da Itália, depois de lutar em Monte Castelo – ela disse.
_Essa foi péssima – eu disse.
_Minha mãe roubou esse troço de um velho alemão nazista. Ela achava que era de prata e tinha algum valor, mas não sabia que era uma arma. Então ela se casou com um argentino chamado Victor Caled, que se dizia imortal e lhe ensinou tudo sobre a Zeta. Eles se separaram e Victor desapareceu. Minha mãe se casou novamente, dessa vez com meu pai, que você conheceu. Ele tiveram uma filha, eu, a quem minha mãe contou tudo o que sabia sobre a arma Zeta durante vinte anos.
Eu me lembrava das iniciais do anel. Talvez eu ainda o tivesse guardado em alguma gaveta.
_Melhorou bastante. Mas não explica como vocês reencontraram a geringonça – eu disse.
_Seu vizinho…
_Roberto?
_Não é Roberto. O nome dele é Victor Caled – disse Manoela.
_E onde ele está?
_Agora eu não sei. Mas ele estava disparando contra nós dois não faz muito tempo.
_Como vou saber se você está dizendo a verdade? – eu disse.
_Não tem como saber. Mas isso também não tem a menor importância.
_Espere aí, então existe uma outra arma Zeta nessa história? – eu disse.
_É claro, existem muitas. Minha mãe diz que existem pelo menos vinte. Foi o que o velho alemão disse para ela.
_Então existiu mesmo um velho alemão?
_Claro, ele estava em Monte Castelo, mas perdeu.
_Entendi. Ele também perdeu na Guerra do Paraguai, eu presumo – eu disse.
_Não, ele estava do lado vencedor. Mesmo assim o prenderam.
_E por quê ele não usou a arma Zeta? – eu disse.
_Porque ele disse que encontrou a arma escondida na cela da prisão. Foi graças a ela que escapou.
_Ah, fala sério! Isso é inacreditável.
_Você gosta de smoking cor-de-rosa?
_Eu não fico bem de smoking cor-de-rosa – eu disse.
Isso era a mais pura verdade.
Naquele dia conversamos horas e horas. Manoela me contou das suspeitas do trisavô sobre a origem da Arma Zeta. Ela acreditava que o artefato tinha sido mantido por indígenas paraguaios durante centenas de anos até ser encontrado pelo seu parente na prisão, erguida sobre as antigas ruínas de um templo qualquer.
_Meu trisavô escondeu o objeto por achar que era valioso e que poderia ser usado para comprar uma fuga ou algum privilégio na prisão. Mas uma noite, tal como aconteceu com a lâmpada de Aladim, ele descobriu como a arma funcionava. Ele esperou com paciência, treinando o uso da arma todas as noites, sozinho em sua cela. Numa noite de lua cheia, com a ajuda da arma ele construiu um túnel e escapou. Ficou meses perdido na floresta, mas a arma Zeta lhe garantia tudo o que precisava, comida e abrigo, segurança e proteção. Tornou-se amigo de uma tribo de índios esquecidos pelo tempo, que se escondiam numa grande pirâmide escondida na floresta de um pantanal. Virou xamã, mágico e curandeiro, dono de uma grande riqueza em ouro só com os presentes ofertados pelos índios agradecidos. Mas era um homem obcecado pela vingança da traição sofrida dos compatriotas, que o entregaram aos paraguaios só porque o invejavam. Tinha estudado na França e lido “O Conde de Monte Cristo”. Planejou a desforra durante anos e quando voltou à Província de São Paulo havia adotado o nome de Edmundo Mondego, porque seria ardiloso como o primeiro e crudelíssimo como o segundo.
_Ué, pensei que seu nome também fosse Alencar – eu disse.
_É Alencar Mondego – ela disse.
Manoela contou como o velho antepassado envolveu almirantes, marechais, coronéis e figuras de patentes menores numa trama que culminou com um terrível massacre oculto da história oficial. Os traidores de Mondego foram degolados por índios fiéis ao xamã durante o último baile da Ilha Fiscal. Depois, sem mencionar como sua trisavó tinha entrado na história, Manoela diz que o trisavô foi brutalmente assassinado por um dos índios, que acabou fugindo para a Europa. Nesse meio tempo, a família perdeu o rastro da arma Zeta, que só foi reencontrada anos depois pelo tio-avô no Monte Castello.
_Depois de três meses de batalha, quando o general Cordeiro de Farias comandou o ataque final, meu tio-avô participou de um grande tiroteio com subordinados do tenente-general von Gablenz no cume do monte, onde havia um ninho de metralhadoras. Um dos alemães estava moribundo, já havia sido atingido diversas vezes, mas continuava a resistir bravamente. As baixas do batalhão brasileiro tinham sido terríveis e continuavam a aumentar. Os homens do pelotão tiraram a sorte e meu tio-avô foi escolhido para seguir sozinho até o atirador numa espécie de missão suicida, para detonar o ninho de metralhadoras. Eles amarraram explosivos em seu peito e o mandaram correr até lá. Meu tio-avô não teve escolha. Mas teve sorte. Ao invés de explodir no meio do caminho, encontrou o ninho de metralhadoras abandonado, com apenas um único alemão, terrivelmente ferido – ela disse.
_Os melhores mitômanos são os que acreditam nas próprias lorotas – eu disse.
_Não são lorotas. Existem documentos, fotos e filmes que provam tudo o que estou dizendo – disse Manoela.
_Ótimo. Gostaria de ver – eu disse.
_Infelizmente isso não vai ser possível. Quando Caleb desapareceu, ele levou tudo, inclusive o restante do ouro. Mas o que há de errado com você, Sam? Você não acabou de ver o que a arma Zeta pode fazer?
_E se eu estiver hipnotizado? E se eu estiver drogado de alguma maneira? E se você for uma ilusionista? Afinal, está tudo praticamente como antes. Uma vez li em algum lugar que os etíopes mascam uma espécie de cipó alucinógeno o tempo todo, o peyote. O consumo intenso acaba levando alguns desses caras a imaginar coisas e a acreditar que elas são reais. O que lembro dessa história é que de alguma forma, muitos etíopes acabam convencidos de que é possível roubar o pênis de um homem enquanto ele está dormindo. E o mais incrível é que muitos deles acordam num dia qualquer convencidos de que alguém lhes roubou o miguel. Quando isso acontece, os caras piram e saem pelas ruas das cidadezinhas etíopes à caça do homem que lhes roubou o pinto. Não é engraçado. Eles realmente acreditam nisso. E quando encontram o que acham que lhes pertence, eles castram os infelizes ainda vivos – eu disse.
Então Manoela apontou a arma Zeta para o sofá e ele virou pó.
_Já vi esse truque no cinema – eu disse.
Ela apontou para a mesinha e ela se transformou em gelo e depois em água.
_Manjadíssimo.
_Estou me sentindo um pouco etíope, agora. Abra as pernas – disse Manoela.
_Espere. Eu acredito. Sinceramente – eu disse.
Mas ela não parecia estar de brincadeira. Manoela se levantou rapidamente e correu para a porta. Olhou pelo olho mágico e reprimiu um grito, tapando a própria boca.
Quando se voltou para mim, estendeu a arma Zeta, antes de cair pesadamente sobre o tapete. Uma enorme poça de sangue se formou sob Manoela.
_Ajude-me, estou morrendo – disse Manoela.
É possível amar quem nunca tocamos? Impossível, dirá alguém apressado, se esquecendo do que sentiu quando percebeu que ali, contra a pele de uma barriga de mãe, era possível distinguir um braço ou um pé e vislumbrar um futuro maravilhoso e feliz. Impossível, dirá algum afoito, que já se esqueceu de todos os amores porque só ama a si mesmo. E todos os amores são possíveis porque é impossível não querer amar, ainda que seja apenas por alguns minutos. Eu divagava e por isso, naquele instante em que Manoela morria, eu tinha certeza de que alguém havia colocado alguma coisa na minha bebida. Manoela estendia a arma Zeta e me dizia alguma coisa. Ao tentar ajudá-la meus joelhos na fantasia de frade ficaram encharcados de sangue.
_Quem fez isso? Quem atirou em você?
_Caleb – disse Manoela, com os olhos agora paralisados.
A porta explodiu à minha frente. Eu empunhava a arma Zeta como vira Manoela fazer, mas com a absoluta certeza de não saberia fazê-la funcionar. Roberto entrou em casa, arrastando Brigitte. Ele apontava um revólver para a cabeça.
_Não se mexa, garoto. Coloque isso no chão. Minha briga não é com você, é com os Mondego – ele disse.
Eu tentava me concentrar na leitura labial, mas aquilo era muito difícil. Brigitte estava me dizendo alguma coisa que eu não conseguia entender de jeito nenhum.
_O quê? Gente? Pente? Sente? – eu pensava. Brigitte se desesperava.
_Pense?
Então pensei em explodir Caleb, mas apenas senti a arma Zeta fazer aquele “blop” inofensivo. Não aconteceu mais nada. Brigitte gritava de desespero e Caleb mirava cuidadosamente. Ele deveria estar quase sem balas.
_Flechas! Eu pensei em flechas atingindo seus braços e pernas – eu disse. Mas não aconteceu nada.
Então Roberto, ou Caleb se aproximou e bateu com força na minha cabeça com a coronha do revólver. Eu deveria ter apagado, então fingi. Caleb puxou raivosamente a arma Zeta da minha mão e disparou contra Brigitte. Ela ficou estranhamente calma e sorridente. Alguém que a visse naquele instante poderia jurar que ali estava uma pessoa feliz, muito feliz.
Tudo o que disseram que acontece quando você sente que está prestes a morrer é verdade. Você vê mesmo o tal filme da sua vida em câmera lenta em velocidade acelerada, mas que a imensa quantidade de adrenalina na sua cabeça faz com que você entenda tudo perfeitamente. Anos de sua vida são comprimidos nos poucos segundos que o instinto vital avisa que restam, e os segundos na sua mente se transformam em minutos e horas. Eu sei porque vi meu próprio filme.
No entanto, não sei se é verdade que algumas vezes a alma se liberta do corpo nos instantes finais, e que é possível olhar para si mesmo e ver o próprio corpo soltar o último suspiro. Existem centenas de relatos de pessoas que juram ter flutuado sobre o corpo inerte e depois disparado rumo ao céu, em direção a uma forte luz, chegando mesmo a vislumbrar a ínfima ponta das vestes de criaturas celestiais. Eu não cheguei a tanto, juro. Embora sempre tenha achado estranho que as pessoas só disparem para cima, nunca vi relato de gente que se sente condenada e mergulhou para baixo, em direção ao inferno. Mas disso nada sei. Só sei que fui deixado ali, com o corpo de Manoela ensanguentado e Brigitte, enlouquecida de felicidade.
Caleb se afastou calmamente, sem pressa, examinando a sala.
Manoela sobreviveu, disseram que foi um milagre. Mas Brigitte nunca se recuperou do estado de felicidade permanente. Jamais soube o que teria acontecido a Alencar. Durante pouco tempo, eu e minha família encontramos uma maneira de ajudar as vizinhas. E depois que teve alta, Manoela tratou de suplantar as dificuldades financeiras com suas habilidades: era exímia artesã, uma ourives de tirar o chapéu. Dizia que tinha aprendido tudo com o pai, agora desaparecido. Copiava, recuperava e embelezava todos os tipos de jóias e também criava peças magníficas com rapidez e qualidade. Sua fama se espalhou rapidamente e em breve, as duas deixariam de ser minhas vizinhas.
Durante muitos meses, no entanto, tentei obter de Manoela explicações sobre o que realmente havia acontecido naquele carnaval. O grande problema é que ela não conseguia se lembrar de muita coisa e qualquer esforço nesse sentido a deixava se sentindo muito mal. Ela nunca mais falaria sobre Caleb, ou contaria qualquer história da família Mondego. Ao mencionar as coisas de que me recordava, Manoela simplesmente se calava. Insistir a levava às lágrimas, era uma tormenta mental que se manifestava fisicamente. A arma Zeta e tudo o que se referia a ela era simplesmente um assunto doloroso.
Obviamente, eu jamais havia dito a qualquer pessoa uma palavra sequer sobre a arma Zeta. Ninguém acreditaria em mim. Aliás, eu também comecei a duvidar de mim mesmo na quarta-feira de cinzas, quando Manoela ainda estava no hospital e eu ainda tentava construir uma história convincente para contar aos meus pais e convencê-los a ajudar as vizinhas: a filha ferida na barriga e a mãe enlouquecida. Isso se mostrou desnecessário porque estamos tão habituados a testemunhar violências horrorosas e absurdas que toda e qualquer história é plausível. Desse modo, minha família acreditou que os vizinhos tinham sido vítimas de um terrível assalto a mão armada e tentado buscar ajuda no apartamento em frente. Versão esta que ficou registrada no boletim de ocorrência e seria repetida por mim à exaustão durante um pretenso processo investigativo. Se descobriram alguma coisa nunca me contaram, nem mesmo durante uma tarde em que fui interrogado duramente, o que me deu a certeza de que a polícia me considerava o principal suspeito do que havia acontecido com Manoela. Mas isso durou pouco tempo, um assalto parecido com o que contei aconteceu no prédio ao lado, e também em outro, e numa porção de bairros da cidade. Nenhuma das investigações sobre esses crimes, que eu saiba, produziu sequer uma única prisão.
Eu seguia com a minha vida, era o tempo de grandes mudanças. Estudos, vestibular, provas, provas e mais provas. A arma Zeta também se tornou para mim um tema incômodo para acalentar na cabeça. Num belo dia no final daquele ano, atravessei o corredor para uma rápida e tradicional visita para a família Mondego, mas não havia mais ninguém lá. Soube pelo porteiro que eles haviam se mudado do prédio naquela manhã. Fiquei entristecido, achava que merecia pelo menos uma breve despedida. Já estava chegando ao elevador quando o porteiro avisou que ela havia deixado uma correspondência na caixa de correio.
Subi as escadas correndo com a carta na mão. Entrei voando no meu quarto e me preparei para a leitura. Mais uma vez, eu pensava, agora era hora de uma boa música de background.
Eu esperava encontrar respostas para as perguntas que fiz durante meses para Manoela. Por quê Brigite havia visitado Roberto meses antes? Ela estava com a arma Zeta ou a tirou de mim? Por quê a família Mondego viera morar no mesmo apartamento que fora de Roberto? Por quê fomos atacados? Onde estava Alencar? Por quê Caleb havia atirado em Manoela? Como ele enlouquecera Brigite? Por quê haviam sumido sem me dizer o motivo? Eu tinha só uma certeza: a resposta de todas elas envolvia a arma Zeta de alguma maneira.
Mas ao invés de uma carta recheada de explicações, dentro havia apenas um outro pequeno envelope contendo uma chave. Não havia nada escrito, nem mesmo uma pequena palavra. E Manoela não havia mencionado nenhuma porta, cofre ou qualquer coisa que precisasse de chave. Não que eu me lembrasse. Era apenas uma chavinha, parecia de brinquedo, ou daquelas chaves de dar corda em brinquedos de mola. Ou talvez fosse de um diário.
Durante algumas semanas mantive os envelopes cuidadosamente encerrados numa gaveta, relembrando aquele dia de carnaval e as conversas posteriores com Manoela, já que Brigite nunca mais dissera uma palavra, apenas sorria. O problema é que as memórias também se desgastam e se esgotam, depois de algum tempo eu já não sabia dizer com certeza se algumas coisas haviam sido realmente ditas. Decidi anotar tudo o que vinha à mente, mas o mesmo processo de desgaste aconteceu. Eu começava a descobrir detalhes que talvez estivessem sendo colocados pela minha imaginação em minhas lembranças. Outras coisas que realmente aconteceram começaram a parecer inverossímeis, como o meu providencial desmaio no carnaval, ou todos aqueles disparos de Zeta na minha fantasia de padre.
Como conseqüência, comecei a duvidar de mim mesmo e das minhas próprias lembranças. Foi como alguns sonhos que se repetem muitas e muitas vezes. Por um período é possível acreditar que tudo realmente aconteceu. Mas por quanto tempo é possível se convencer de que um sonho é real? Além disso, a ilusão duradoura não é um sinal evidente de loucura? Eu não queria ser louco. Nem mesmo um louco eternamente feliz, como Brigite.
Um dia, alguns meses depois, joguei fora os envelopes, coloquei a chave num cordão e pendurei no pescoço, junto com uma figa pequena. Eu havia conseguido entrar numa universidade e tinha muito em que pensar. Na verdade, com tanta coisa acontecendo, não havia lugar para a arma Zeta na minha cabeça, embora gostasse da lembrança de Manoela.
Logo que sumiram, eu ansiava por encontrá-la na rua, ao atravessar uma rua, no meio da multidão no shopping, num ponto de ônibus ou no parque. Mas depois desejei o contrário, que jamais voltasse a ver qualquer das duas, ou Caleb, ou a arma Zeta. Então, depois de algum tempo, guardei a chave numa gaveta, fiquei só com a figa no pescoço. Nesses dias, eu não me lembrava de nada.
Talvez seja sempre assim. Já ouvi muitas histórias de pessoas que passaram anos sem se encontrar. Irmãos, filhos, pais, esposas passam anos procurando uns aos outros sem sucesso e um dia descobrem que são praticamente vizinhos. Quando não desejamos mais surpresas, elas acontecem. Na véspera do carnaval do ano seguinte, eu reencontrei Manoela.
Não existem muitas certezas sobre o amor. Há quem diga que ele tem início, meio e fim. Mas existem os que juram que se existe fim, então não se trata do verdadeiro amor. E como saber onde o infinito se inicia, ou se está perto ou longe da metade? – eles perguntam. Segundo uma outra corrente, o amor seria infinito como os números que existem entre 1 e 2. Para esses poetas matemáticos, o amor é infinitesimal e de um certo limite não passa. Gosto dessa definição, mas sei que é melhor não falar disso ao pé do ouvido de ninguém.
Por outro lado, não existem muitas dúvidas quanto ao ódio. Em geral, a maioria das pessoas consegue estabelecer a origem do ódio que devotam a um indivíduo ou a um grupo deles. São pequenas coisas – dizem. É verdade. O mundo é formado de uma infinidade de pequenas coisas. Mesmo assim, não existe um ódio pela metade. Os ódios são inteiros, grandes ou pequenos, mas inteiros. Também não existem dúvidas quanto ao fim do ódio. Ele coincide com o fim da pessoa ou coisa odiada, é simples.
Seja como for, eu estava convencido de que amava Manoela. E até o dia em que ela desapareceu, eu acreditava que era recíproco. Talvez seja verdade que até a primeira decepção quase sempre acreditamos que o amor é via de mão dupla, que ele nos alimenta se o alimentarmos com a entrega absoluta do coração. Depois de um coração partido, senão antes, muitos acabam convencidos de que esta é uma trilha solitária no deserto e que só alguns sortudos doidos conseguirão escapar da solidão. Outros terminam seus dias convictos de que tudo isso é bobagem, é melhor procurar um outro hobby.
Quando reencontrei Manoela, eu queria ter falado de amor e do quanto eu sentira sua falta. Eu queria ter falado de quantas vezes toquei a campainha, das dezenas de tardes que bati à sua porta, das poesias que eu escrevera, dos pedidos e promessas que fiz para que ela voltasse. Mas alguma coisa me proibiu de falar nisso, porque antes de abrir a boca eu percebi que ela não me reconhecera. Ela apenas sorria. De algum modo, era o mesmo sorriso estúpido que vi durante meses no rosto de Brigite.
Fiquei congelado na calçada, a poucos metros de Manoela. Ela estava sentada à sombra de um guapuruvu, no parque desta cidade. À sua frente, um homem mais velho, alguém que parecia familiar. Eu me aproximei devagar, no meio de um pelotão de atletas de fim-de-semana do parque, estudando a fisionomia de Manoela, tentando descobrir um sinal de reconhecimento e ao mesmo tempo tentando me lembrar quem era a pessoa à sua frente. Quem estava conseguindo fazê-la sorrir?
_Alencar – eu disse para mim mesmo, assim que passei pela mesa dos dois.
Manoela não sorria para o pai, mas para o brilhante objeto sobre a mesa que encantava ambos. Era a arma Zeta.
Há virtude em se assumir erros e enganos. A percepção dos próprios desatinos é uma condição para superá-los. O arrependimento é o início da volta por cima, da recuperação da normalidade. Tudo isso pode acontecer, mas não é regra. Embusteiros de alto calibre muitas vezes não dão o braço a torcer e acabam seus dias curtindo praias fantásticas no Caribe, acompanhados de fêmeas pneumáticas de beleza estonteante, de parar o trânsito. Pessoas completamente sem noção podem ser eleitas para altos cargos públicos simplesmente porque são atraentes ou porque possuem uma aptidão natural para serem testas-de-ferro. Criminosos pegos com a mão na botija muitas vezes dizem que o mais importante de tudo é não confessar, não confessar, não confessar.
Essas coisas atravessavam a minha mente quando vi Alencar e a filha sentados à sombra, no parque desta cidade. Eu precisava de tempo para entender o quadro que começava a se formar, mas ao mesmo tempo não poderia correr o risco de perder a dupla e a arma Zeta de vista. Eu estava de boné, óculos escuros e camiseta tentando iniciar um programa de corridas. Os dois não me reconheceriam jamais, eu pensei. Por isso resolvi me sentar um pouco, numa mesa onde pudesse ficar de olho sem chamar a atenção. Eu acreditava que permanecendo discretamente atrás dos óculos escuros e observando com cuidado teria uma boa chance de estudá-los à distância e descobrir alguma coisa antes de abordá-los. E foi o que tentei fazer.
Mas antes que eu dissesse abracadabra a dupla se levantou e começou a se misturar com a multidão. Tive que sair correndo justo quando chegou a minha água-de-coco, é sempre difícil. Aqui iniciamos uma perseguição esquisita, os dois se afastando rapidamente e eu tentando acompanhá-los em meio a uma multidão de ciclistas, skatistas, patinadores, corredores e vendedores com seus carrinhos refrigerados. De repente, sumiram. E foi por pura sorte que os vi lá na frente, entrando num grande veículo preto. Consegui correr até conseguir ver todas as letras e números da placa. Agora eu só precisava de um amigo no Detran para descobrir um nome e um endereço relacionado ao veículo.
Nenhum homem é uma ilha. Quem não tem conexões, não sobrevive. É correto, é justo. Mas aqui é diferente. Não há como vencer sem o compadrio. Quem não é da panela, se ferra. A civilidade só existe entre os camaradas. Eu precisava de alguém no Detran. E teria que ser uma pessoa que fosse uma pessoa estúpida o bastante para acreditar na história que ia inventar. E além disso, essa pessoa teria que me passar nome completo e endereço do proprietário do grande veículo preto. Essa pessoa era o meu primo Vinícius, que todo mundo chamava de Vini.
Eu disse a Vini que esse cara tinha me fechado e eu quase tinha caído de moto.
_ E o que você quer com ele? – disse Vini.
_Riscar o carrão, Vini. Vou usar uma chave-de-fenda pequena que eu tenho. Dá pra fazer um risco fino, mas bem profundo. Risquei tão fundo o capô do último babaca que me fechou que ele teve que trocar o tampo e as portas – eu disse.
Vini é um cara que entende as paixões primárias e os instintos selvagens dos seres humanos. Na verdade, ele é movido por todas elas. Quando entrou no Detran, Vini desenvolveu um método para transferir as multas de alguns infratores escolhidos para vizinhos e desafetos acumulados durante sua vida atribulada. Foram muitas multas. Os vizinhos foram estimulados a saber que ele trabalhava no Detran e que poderia fazer alguns favores em troca de uma módica compensação. Ele se tornou um quebra-galho discreto na vizinhança. Era um tipo boa praça. Todo mundo gostava do Vini. Eu também. O mais legal de tudo era que em casos assim, de pura vingança envolvendo um familiar, o Vini não cobrava nada.
_Se você quiser, eu te ajudo. Nunca risquei um carrão importado antes. Mas uma vez derramei ácido muriático no teto de uma Mercedez – ele disse, antes de soletrar o endereço e o nome do proprietário do carro.
_Mon-de-go – disse Vini.
Eu anotei tudo com cuidado. E descobri que o primeiro nome de Alencar era Rosalvo.
Quando cheguei à frente da mansão, por volta do meio-dia, parecia não haver ninguém em casa. Fiquei olhando através do portão, examinando o gigantesco jardim. Dava pra ver uma pontinha do lago desta cidade.
_Em que posso ajudá-lo? – disse Manoela, a menos de três metros do portão.
Levei um susto, é claro. Mas eu estava de capacete e casaco, era impossível ver o meu rosto debaixo daquilo tudo. Era sexta-feira pré-carnaval. Eu estava irreconhecível, tinha certeza disso.
_Sei que é você. Nós o vimos no parque da cidade. Você até que conseguiu descobrir onde estávamos bem rápido. Aposto como foi aquele seu primo do Detran que ajudou. Como é mesmo o nome dele? – disse Manoela.
_Vinícius – eu disse, tirando o capacete. Mil dias começaram a subir sobre os meus ombros.
_O primo Vini, isso mesmo, você me contou. Ficou devendo um favor a ele, não foi?
_Não. Ele não cobra quando o assunto é de família.
_Uma ova. Qualquer dia ele apresenta a conta, você mesmo me disse.
_Resolvi que valia a pena – eu disse.
_Não vale, acredite. Eu gostaria que você não me procurasse mais. Já faz mais de ano, foi no outro carnaval. Esqueça tudo – disse Manoela.
_Não consigo. Fico vendo a poça de sangue se formando debaixo da sua barriga.
_Isso nunca existiu. Nunca aconteceu. É coisa da sua cabeça, seus pais falaram com a gente. Minha mãe se cansou depressa, perdeu a paciência. Eu também, por diversas vezes perdi a paciência. Eu sou a sua monomania, a pessoa que desperta suas fantasias. Faço você imaginar coisas, construir moinhos de vento. Mas eu não sou Dulcinéia. Nada disso é real. Procure outra pessoa, por favor. Onde está aquele médico? Me deixe em paz. Ou serei obrigada a chamar a polícia. Meu pai…
_Rosalvo Alencar Mondego – eu disse.
_Victor Caleb – disse Manoela. Meu pai, Victor Caleb, deve chegar a qualquer momento. Vá embora. Será melhor para você. Todas as vezes que se encontram acabam brigando. É melhor você não se verem.
_E onde está a arma Zeta? – eu disse.
_O enfeite de mesa? Aquele brinquedo velho? É nisso que você pensa? É só um brinquedo antigo – disse Manoela.
As razões são constituídas de fatos. O que é verdadeiro não pode, ao mesmo tempo, ser percebido como falso. Quando isso acontece, ocorre a confusão e a loucura. A verdade não varia de indivíduo para indivíduo, de acordo com a percepção de A ou B. Isso seria absurdo. Assim, só é possível ter um único tipo de relação com a verdade, o verdadeiro. Qualquer outro tipo é falso. Para Kant, a mentira prejudica a humanidade em geral. Para Montaigne, os mentirosos deveriam ser consumidos pelas chamas.
Muitas pessoas se entregam a mentiras e a outros tipos de comportamento avesso à verdade. Isso não dificulta a conversa ou o convívio proveitoso com essas pessoas. Significa apenas que temos que ser mais cautelosos. Podemos nos sair muito bem num ambiente de fraude e de falsidade, desde que possamos contar com nossa própria capacidade de discernir entre os diferentes tipos de casos. Existem aqueles casos em que as pessoas estão deturpando as coisas para nós. Existem também os casos em que estão nos tratando com sinceridade. O único problema é que existem mais complicadores para cada uma dessas situações. As pessoas que estão deturpando as coisas, por exemplo, podem estar sinceramente convencidas de que não estão mentindo, embora o estejam. Por outro lado, podem ser mentirosos contumazes subitamente convencidos de que é melhor falar a verdade. É difícil saber. Quase sempre, somos apenas levados a acreditar em quem nos desperta maior confiança. No final das contas, as pessoas acreditam em qualquer coisa que queiram acreditar ditas pelas pessoas em quem confiam.
A variedade é grande. Existem pessoas que duvidam que o astronauta Neil Armstrong esteve na lua com o Apollo 11. Foram truques fotográficos. Outras pessoas conseguem provar que as torres gêmeas foram destruídas por explosivos cuidadosamente plantados e não porque aviões se chocaram contra os edifícios. Tudo teria sido fruto da ação de agentes do próprio governo para justificar ataques a países do Oriente Médio. Hitler teria morrido de velho na Argentina. Elvis não morreu, só se cansou da coisa toda. Obama é o verdadeiro Yuri, o comunista infiltrado pela extinta União Soviética que desmontará a América por dentro. Deus ainda não veio. Deus não veio, mas mandou o Filho, que foi morto cruelmente. Deus virá. Deus vem todos os dias. Deus não precisa vir. Eu só verei Deus se fizer as coisas ditas pelos caras que conversam com Ele.
Quem está certo? Quem está com a verdade? As pessoas acreditam no que precisam acreditar. E aquilo em que acreditam é a única verdade. Até que descubram que a verdade em que tanto acreditam, ditas pelas pessoas em quem tanto confiam é, na realidade, uma mentira.
Naquele momento, eu tive certeza de que Manoela não estava dizendo a verdade. Mas não sabia até que ponto ela estava mentindo.
_Então me devolva aquele brinquedo velho – eu disse.
_Aquilo é parte da sua mania. É o seu Elmo de Mambrino – disse Manoela.
_Besteira. Eu não sou nenhum Quixote.
_Não? Pois parece. Está aí, montado na sua motoca, de capacete, caçando moinhos de vento. E com a ajuda do seu primo barrigudo, o Sancho Pança Vini.
_Foi você que me falou da arma Zeta!
_Lá vem a sua loucura novamente. Eu jamais falei coisa alguma sobre essa sua fantasia. Eu me arrependo amargamente de ter ajudado meus pais a socorrer você, desmaiando de bebida no corredor do apartamento, naquele carnaval.
_Você não vai conseguir me confundir. Não adianta. Você é uma Mondego. Filha de Rosalvo Alencar Mondego.
_Meu nome é Manoela Caleb. Meu pai se chama Victor Caleb. Minha mãe se chama Brigite Eleonor Caleb. Passei um ano da minha vida repetindo a mesma coisa para você.
_Não é isso que está escrito aqui, ditado pelo meu primo Vini – eu disse, enquanto arrancava o pedaço de papel do bolso e olhava a minha anotação. Foi então que, sem nenhuma surpresa da minha parte, vi as letras da minha caligrafia se estreitando e se alongando, numa rápida reorganização. Agora era possível ler VICTOR CALEB, em letras maiúsculas. Eu sabia, eu sabia. Alguém, em algum lugar, havia acabado de disparar a arma Zeta na minha anotação.
Uma vez vi um filme sobre um sujeito que inventava um colírio para melhorar a visão. O cara era um médico que estava quase cego e o colírio, além de salvá-lo da cegueira, de algum modo começou a fazer com que ele desenvolvesse uma visão super-aguçada. Esse sujeito começou então a enxergar tudo e mais um pouco, ele começou a ver os órgãos das pessoas. E no início essa visão fantástica o ajudou no trabalho, a pessoa entrava para uma consulta e ele dava uma mirada no esôfago do sujeito e já localizava o tumor. Outra pessoa entrava e ele olhava para o estômago do cara e lá estava uma úlcera enorme, o problema com o pâncreas, o intestino, o coração.
O tal médico era uma abreugrafia autônoma, um scanner tomógrafo-computadorizado vivo. Ele fazia consulta-relâmpago, com exame, diagnóstico e receituário imediato, na lata, não precisava esperar nada. E até aí você fica achando que o cara vai se dar bem, não há como dar errado. E é exatamente o que começa a acontecer no filme. Ele fica milionário. Todo mundo quer se consultar com ele, é uma loucura.
Mas tudo que é bom dura pouco, o cara não para de trabalhar e começa a usar colírio demais. Ele não consegue dormir porque as pálpebras já não protegem os olhos da luz, ele vê através delas. Para ter algum tipo de descanso ele inventa uns tapa-olhos, mas isso também não adianta muito. Logo, logo, a clientela começa a ficar com medo do médico, porque os olhos dele vão ficando esquisitos, com uma cor escura. E porque ele não dorme, o cara fica maluco e agressivo, num instante todos os pacientes se mandam.
Aí a próxima cena que você vê é esse médico numa lona, sendo anunciado como uma aberração de circo, num espetáculo de adivinhação. Acontece que o médico desenvolveu uma visão de raio-x e os olhos dele estão vendo mais do que o esqueleto, ele está vendo a alma das pessoas. Ele consegue saber quem é bom, quem é ruim, quem fez a coisa certa e quem errou. Acontece mais alguma coisa, há uma cena que eu não lembro direito, ele vê um bebê no útero da mãe. A última cena mostra o sujeito vagando pelo deserto, com o rosto ensanguentado. A última fala do médico no filme é “Se o teu olho o ofende, arranca-o.”
Lembrei dessa coisa toda enquanto ligava para o meu primo Vini. Ele era o único que poderia confirmar a informação. Pelo o que eu sabia, a arma Zeta não poderia transformar ligações telefônicas.
_Vini? Vini? É você? – eu disse várias vezes.
Mas não era. A pessoa que atendeu disse que alguém havia atropelado meu primo e que ele estava no hospital. E quando cheguei ao hospital ele já estava morto. Eu gostava do primo Vini. Se aquele médico do filme o tivesse visto diria que ele tinha uma boa alma.
Na quarta-feira de cinzas, o enterro do meu primo Vini foi rápido. Não havia quase ninguém. Os dois coveiros fizeram um serviço displicente. Nos filmes nós vemos os americanos em ternos e vestidos impecáveis, as covas geometricamente abertas em gramados perfeitos, se despedindo dos falecidos com elegância e sobriedade. Não se vê barro e lama, há orações e música da melhor qualidade. Nada poderia ser mais contrastante com nossa realidade. Por aqui os coveiros espalham terra para todo lado, o caixão fica imundo antes de descer à cova, não existe um lugar para se pisar que não seja grudento. As pessoas em suas roupas de supermercado se despedaçam em lágrimas e desespero. Berram súplicas desesperadas em direção ao céu.
Eu fitava os pombos entre os túmulos. Ninguém sabe quem inventou o conceito de síndrome do pombo enxadrista. O que não diminui a genialidade embutida nessa definição. De acordo com essa situação hipotética, discutir com algumas pessoas é como jogar xadrez com um pombo. A ave derruba e espalha as peças do jogo, defeca no tabuleiro e estraga a partida. No final, o pombo ainda sai cantando vitória, aos arrulhos, com o peito estufado. Rru, rru.
Eu era um pombo quando discutia com Manoela. Mesmo assim, ela sempre conseguia me convencer do que dizia. Eu fazia tudo o que ela queria. Eu era o pombo enxadrista que perdia todas. Ou talvez estivesse vendo as coisas sob um prisma errado. Quem poderia saber como seria uma partida de xadrez entre dois pombos?
Os coveiros terminaram o serviço e saíram lentamente arrastando as pás. Ao olhar para um canto mais distante de onde estávamos, julguei ter visto Manoela fantasiada de índia. Os coveiros desapareceram. Manoela ria de mim e apontava a arma Zeta para onde eu estava. Uma a uma, todas as pessoas presentes ao enterro viraram fumaça, até que só restaram pequenos montinhos de roupas e eu.
_Montinhos de roupas? Que ridículo – disse Manoela.
_Também acho, mas não sou eu que estou disparando essa coisa. É você. Se dependesse de mim, eu desintegrava tudo – eu disse.
_Eu não estou disparando nada. Isso é tudo coisa da sua cabeça, Toni.
_ Toni? Você vivia me chamando de Sam. Agora é Toni?
_É tão bom quanto Manú. E você sempre me chama de Manú – ela disse.
_Tudo bem, Manú. Se as pessoas não estão desaparecendo, se você não tem nada a ver com a morte do meu primo Vini, pode me explicar o que está fazendo aqui, no cemitério?
_Eu poderia mentir sobre isso, Toni.
_Eu sei, Manu. Você faz isso o tempo todo. Mas você também poderia dizer a verdade.
_Tudo bem. Vou dizer a verdade. Por onde você quer que eu comece?
_Pela arma Zeta.
_Por isso aqui? É só um pedaço de lixo, já te disse muitas vezes. Tome, é inofensivo – disse Manoela, estendendo a arma Zeta para mim. Eu a agarrei imediatamente.
_ Esta é a arma de todas as armas, você mesmo me disse. E também já me contou uma história louca, do seu trisavô, índios, traições e nazistas.
_ Eu menti daquela vez. Uma única vez. Era carnaval. Você estava muito louco. Eu também. Foi uma brincadeira. Sua imaginação fez o resto. Mas desde então vivo repetindo a verdade. Não existe arma Zeta. Isso é só um enfeite de mesa. Mas você sempre prefere a mentira. Eu digo que é um brinquedo velho, você diz que é um artefato bélico. É uma questão de caráter.
_Você se feriu, sua mãe ficou louca, Caleb a usou …
_Caleb é meu pai! Ele jamais nos machucaria. Foi você que pirou e passou mal, Toni. A história da arma Zeta de algum modo fez você entrar em curto-circuito. Cuidamos de você até que seus pais chegaram de viagem. Mas depois você se tornou um chato, não saía lá de casa…
_ E por quê você deixou esta chave para mim? – eu disse, segurando a chave no colar e apontando a arma Zeta para Manoela.
Com os olhos arregalados, Manoela emudeceu.
_Eu não deixei nada para você. Por favor, me devolva o brinquedo – ela disse.
_Então foi Brigite, não importa. Eu demorei a entender, Manu, que a arma de todas as armas deveria ter um gatilho especial. E o que seria mais especial do que um gatilho externo que não se parecesse com um gatilho? Bacana, não é? Mas foi só o início. Depois eu remoí a memória e descobri que você me deu uma dica e tanto quando disse que só você poderia disparar a sua arma Zeta. Você também disse que existem várias armas Zeta em circulação. Eu não sou muito inteligente, mas ficou óbvio que para cada uma das armas haveria também um único e exclusivo gatilho. Uma chave, um anel, um colar, um brinco, um pingente… Coisas que uma exímia artesã poderia fazer em casa.
_É tarde demais, Toni.
E sem que ela me dissesse eu sabia que Caleb estava às minhas custas.
Não havia harmonia de pensamentos entre eu e Caleb. Não deliberamos em conjunto. Eu desconsidero qualquer aprovação da parte dele e não preciso de sua permissão para fazer o que eu quero. Mesmo assim fizemos um acordo, buscamos um meio termo entre vontades. Existem pessoas que não admitiriam a possibilidade de fazer um acordo sob a ameaça de ser desintegrado. Obviamente, eu não sou uma delas.
Caleb diz que é imortal. Eu não acredito. Mas também não duvido. A única coisa que sei de fato é que não virei um montinho de roupas porque Manoela acionou o campo de força da arma Zeta. Sim, a arma Zeta é capaz de gerar um campo de força.
_Isso é tecnologia alienígena, meu caro, quase tudo pode acontecer – disse Manoela.
_Então a arma Zeta veio de outro planeta? – eu disse.
_Veja bem… – disse ela.
Ficamos um tempão dentro do campo de força, até que Caleb fez uma pausa para ir ao banheiro. Quando ele voltou foi a minha vez de disparar contra o campo de força de Caleb. Achei bem legal disparar com a arma Zeta. É como se você segurasse um ferro de solda sem fagulhas, mas com todo aquele brilho. Manoela sugeriu uma nova pausa e um acordo para que tivéssemos melhor qualidade de vida.
_Estou cansada de raios disso, raios daquilo, campos de força. Vamos fazer outra coisa. Que tal? – disse Manoela.
Caleb pensou um pouco e depois abaixou a arma Zeta. Era diferente da minha. Parecia um daqueles ganchos para pendurar sacolas plásticas de supermercado. Ou então um cabo de guarda-chuva.
_Tudo bem. Vamos fazer uma trégua até o jantar. Estou com fome – disse Caleb.
Mas a trégua acabou se prolongando. Depois de alguns dias, fui convidado para jantar. Só aceitei porque Manoela me garantiu que eles não tinham nada a ver com a morte do meu primo Vini.
_E os coveiros? E as pessoas no cemitério?
_Caleb tem uma mira ruim, sorte sua. Olha, Toni, ele quer propor um acordo, o que passou, passou – disse Manoela.
_Anistia ampla, geral e irrestrita – eu disse.
_É. Só mais uma coisa. Prometeu, tem que cumprir. Ele não suporta traição.
Estou observando a margem do lago desta cidade. Vejo tudo de uma residência particular, confortavelmente instalado numa cadeira de fibra trançada. É uma propriedade grande, mas sem luxos. À frente, um gramado bem cuidado e um píer pequeno, com postes de luz e tartarugas de sinalização. É um belo local a qualquer hora do dia, mas é singularmente belo à noite.
Vindo do lado direito, surge um pescador com um molinete. Houve uma época em que era muito comum aparecer alguém com caniços e tarrafas. Agora só aparecem sujeitos com molinetes reluzentes, máquinas high-tech que não conseguem operar corretamente. Os caras lançam iscas a dois metros com um equipamento projetado para lançamentos de 20 a 25 metros. Se ele soltasse a linha e atirasse o anzol iscado com a mão obteria uma distância muito maior. O pescador está adernando para a direita, tropeça, pragueja gesticulando e cai sentado sobre o fio d´água, o que me leva a concluir que está chapado.
Ainda adernando, o pescador encontra um grande pedaço de isopor. Desta distância não consigo descobrir que tipo de isopor é aquele, mas parece ser grande o bastante para alguém subir em cima. É o que o pescador pretende fazer. Ele espetou o molinete numa extremidade e procura um jeito de se acomodar sentado sobre o isopor. Começa a ficar engraçado. É impossível ficar sobre o bloco sem que a coisa vire. O pescador já levou dois tombos mas ainda insiste. A vara de pesca continua espetada, por milagre.
O sujeito não vai desistir agora. Ele decidiu se abraçar ao isopor, como se fosse uma prancha de surf. Começa a se movimentar para uma área mais profunda do lago e perde o pé, já não tem apoio. A situação instável fica perigosa, ele está uns 50 metros da margem. A vara se inclina e é puxada repentinamente. O pescador afunda sob o isopor. Quando emerge, a vara se foi. O sujeito se agarra desesperado ao isopor e começa a bater os pés. Ele vai conseguir. Vai sobreviver. Ou não.
Caleb mira cuidadosamente e dispara a arma Zeta. Tudo o que consigo perceber é um pequeno círculo de ondas que se dispersa rapidamente. O pescador continua a bater os pés.
No acordo que fizemos, famílias à parte, cada um usa a arma Zeta como quiser, sem a interferência do outro. Caleb também concordou em responder todas as minhas perguntas, desde que eu só fizesse uma única pergunta por dia. Ele só conseguiu acertar o pescador depois de nove disparos. Não parece preocupado. Tem todo o tempo do mundo para melhorar a mira. E eu tenho um monte de perguntas para serem respondidas.
FIM
Um modelo de futuro diferente
Outro dia fiz uma busca de imagens na Internet sobre o futuro. É gozado como é velha a nossa imagem de futuro. Quase tudo remonta a Júlio Verne. E.R. Burroughs(Tarzan e John Carter no Planeta Marte) e Metrópolis. Ali estão elas, as cidades gigantes verticalizadas, sem um pingo de verde, com intenso trânsito de máquinas voadoras e sem lugar para nós, formigas humanas. Só nos resta o subterrâneo, as catacumbas, o lodo e a lama.
Também é velho o nosso imaginário do pós-apocalipse. É quase sempre a mesma coisa. Depois de esgotarmos o planeta, estaremos em guerra. O repovoamento é quase impossível, porque uma nova espécie surgiu para suplantar a raça humana. Além disso, somos incorrigíveis. Tratamos de detonar o planeta rapidinho.
Não me lembro de jamais ter lido uma ficção futurística que não fosse apocalíptica. Tudo bem, os escritores estão cobertos de razão, o futuro não promete ser muito cor-de-rosa. Mas, pô, isso tem que ser unanimidade? Se existem ficcionistas polianas, por quê não existem ficcionistas futurísticos polianas? E repare que há décadas que estamos nesse baixo astral para o porvir.
A verdade, como já disse o Renato Russo, é que o futuro não é mais como era antigamente. Bem muito antigamente. Quando ainda se falava em terra do leite e do mel e isso nos bastava. Exatamente na época em que os caras que falavam isso, se escondiam em catacumbas. Gozado, né?
O mais estranho dessa espécie de ciclo, é que volta e meia, a gente lê uma história metida a futurística onde o sujeito volta para o passado pré-histórico. E lá nos confins do passado, algo que veio do futuro nos levará para a nossa caminhada histórica de seres humanos.
Super-clichêa. O neanderthal que passa por uma dobra temporal e chega ao presente. O sujeito que veio do futuro e ninguém acredita, passa por maluco metido a profeta, a Cassandra incapaz de deter o que está escrito nas estrelas.
Uma vez, li numa história em quadrinhos do Superpateta que a história é imutável. Achei super-legal. O Pateta comia uns super-amendoins e voltava para o passado. Mesmo sendo Super, ele se machucava o tempo todo, pois sequer as folhas da grama ele poderia curvar, no passado. Nesse mesmo gibi, o Superpateta ia para o futuro. E lá era o contrário. O futuro era totalmente inconstante. Onde havia floresta, no instante seguinte, era cidade. Rios secavam num piscar de olhos. Até o super começa a ficar mole, a bambear e a se dissolver, feito uma onda eletromagnética. Tudo era instável, pois o futuro é só uma possibilidade intangível entre zilhões de possibilidades. Pateta só consegue escapar porque um superamendoim germina milagrosamente rápido no futuro.
Até hoje tento encontrar essa história fantástica em sebos de quadrinhos. Em poucas páginas, o personagem de Walt Disney moldou a minha idéia de futuro numa algazarra de possibilidades infinitas. Nós seres humanos, somos iguais ao cachorro Pateta. Teremos sorte se encontrarmos alguns amendoins pela frente.
Pesadelos idiossincráticos
Sou um leitor compulsivo. Leio tudo que minhas mãos conseguem alcançar e colocar diante dos meus olhos. Especialmente quando me tranco no banheiro e as crianças não podem interromper. O universo de leitura vai de livros até brochuras com informações detalhadas sobre as formas de pagamento de um bloquete de cobrança bancária. É lógico que isso teria que provocar algum tipo de problema. E o calor que vem fazendo também só poderia aumentar as conseqüências.
Para resumir, embora ainda esteja no segundo parágrafo, tenho tido pesadelos estranhos, muito idiossincráticos. Sou atacado por expressões idiomáticas, sejam elas ninfetas ou maduras, vestidas em trajes de gala ou com indumentárias típicas, estereotipadas. Pequenas palavras estrangeiras também estão se organizando para me apavorar. Sozinhas ou em gangues, elas se aproveitam do meu estado de nervos e me ameaçam. Sou uma vítima constante de galicismos e anglicismos. As palavras e até expressões aparecem uniformizadas, em negrito itálico, ou vestidas de aspas sumárias, mas equipadas com o que existe de melhor em tecnologia armamentista.
Numa madrugada dessas, uma “Uh-lá-lá” tentou me obrigar a fazer alguma coisa que não consegui descobrir o que era depois de dançar o “Can-Can” em minhas sobrancelhas. Levou uma tapona de uma “Bad Girl” que decidiu que o melhor era me congelar com um raio cósmico. Ela também estava armada de mísseis “Exocet” e certamente teria alcançado seus objetivos se uma ambígua “Bah!Tri-legal, tchê!” não viesse em meu socorro. Acho lindas as mulheres lindas do sul e sudeste, e também as do norte, nordeste e centro-oeste. O devaneio me levou a outro e mais outros e foi assim que escapei.
Na manhã seguinte, analisei com cuidado a questão. Eu estava tendo sorte pois eram definitivamente expressões heterossexuais, que não ficavam nada más vestidas em “lingerie” preta. Mas a coisa poderia mudar de figura. E essa perspectiva não me agradava. Decidi que evitaria ler qualquer coisa. Decidi que passaria a observar com cuidado as orelhas e as capas. Ficaria de olho nos efeitos colaterais. Nada de entrelinhas, nada que tivesse parágrafos inteiros escritos em letras minúsculas. Pesquisaria contra-indicações. Não leria nada que tivesse letras e números entre parênteses no início das frases. Evitaria os sujeitos que abusam de adjetivos, esse glacê vicioso dos medíocres. Especialmente antes de ir dormir. E durante o dia, graças a um livro do William Golding, cumpri o prometido. Só que à noite, precisei ir ao banheiro, sem “O Senhor das Moscas”. Encontrei um folheto sobre seguros de automóveis no banheiro, que estava sendo usado como marcador de um livro do Philip Roth.
Naquela noite, um “Bar Mitzvah” me atacou num canto de pesadelo e teria me sufocado em Complexos de Portnoy se um sujeito de quipá e filicários não tivesse me explicado o significado da expressão. Na seqüência, fui salvo pelo mesmo sujeito de um “shtetl”, que significa vilarejo judeu tradicional. Só assim é possível escapar. Com o significado correto da expressão sendo atirado, feito uma torta de creme, no rosto do agressor. Por causa disso, abandonei Roth pela metade e não leio Saul Below e Isaac Bashevis Singer há tempos.
Teria que tomar novas precauções. Mas quais? Eu me policio, evito ler qualquer pedaço de papel. Tentei os clássicos. Mas bastou ler Macunaíma, de Mário de Andrade, e pronto. Um puíto (buraco da lapela do terno para colocar flor) me salvou de uma flunfa (sujeira do umbigo), que por sua vez havia me libertado, sob protestos meus e dela, de uma cunhã (mulher em Tupi) ajeitada. Sob protestos, volto a dizer.
Mas com essa descoberta, confesso, fiquei mais tranqüilo. Embora tenha percebido que ela, a descoberta, tenha vindo acompanhada da tendência a utilizar apostos. As pequenas explicações acompanhadas de vírgulas começaram a surgir nos meus pesadelos, bem vestidas em biquínis e maiôs, mas sempre com caras e poses de bandidas. Durante semanas, elas me dominaram. Agiam em duplas, me espancavam até que, no pesadelo, eu cochichasse gírias velhas como “Tremendão!”, “Baratão!”, “Brasa!”, “Jóia!”e a campeã de todas : “Putzgrilla!”.
“Putz”, como a chamo, faz um baita sucesso até hoje. Está sempre de mini-aspas e usa um batom vermelho brilhante reforçado. Dela, eu jamais conseguirei escapar. Nunca tive a menor idéia do que significa.
A indesejada das gentes
Quando a indesejada das gentes chegar
Talvez eu tenha medo.
Talvez eu sorria, ou diga:
– O meu dia foi bom pode descer.
Consoada de Manuel Bandeira
A morte mais bonita que eu já vi no cinema foi a Jessica Lange, em “All That Jazz”, filme dirigido por Bob Fosse em 1979, e apelidado no Brasil de “O Show deve continuar” (Deve sim, mas poderiam ter inventado um nome melhor). Jéssica fazia o papel de morte e cantava sedutoramente o dançarino/coreógrafo que vivia o personagem principal. “Está na hora. Agora vamos”, ela diz, quase no final, com um lindo sorriso. E dava vontade de levantar da poltrona e ir embora com ela. Jéssica Lange personificou uma morte belíssima, charmosa, sensual e até alegre. No telão do cinema, era alguém a quem você se entregaria, se não de alma, pelo menos de corpo.
Depois disso, não lembro de ter visto morte bonita no cinema. Fizeram um filme com o Brad Pitt, em que ele encarnava a “indesejada das gentes”. Morte masculina. Rum. E ele ainda traçava uma belezura antes de rebocar o Antônio “Silêncio dos Inocentes” Hopkins para o além, o além. Lembrei também de ter visto “Uma Janela para o Céu”, em diferentes versões. Em todas não existe morte personificada, mas uma espécie de mensageiro/mordomo que vai levar o personagem para cima, num lugar azul e branco cheio de nuvens, ou para baixo, lugar enfumaçado com chamas e muito vermelho.
Aí eu comecei a pensar na minha própria morte. Em como ela seria se fosse personificada. Na verdade, de tanto pensar em como ela seria foi que a vi, em pé, quietinha, os braços esticados colados ao corpo nu, no canto do meu quarto. Estava bem ali, meio espremida entre a estante, o criado-mudo e a parede. Era rápida como uma sombra e não me deixava ver o rosto. Ficava mexendo os cabelos, ou melhor, os cabelos se mexiam como cobras, pequenas serpentes escuras. Olhei melhor e percebi que eram mesmo serpentes. Uma quase me acertou o bote. Cada serpente soltava uma risadinha que parecia uma guitarra com delay.
A minha morte era do tipo calada, que evitava olhares diretos. Tinha calos nos joelhos de tanto me observar em minhas quedas nas sarjetas. E usava um par de óculos escuros e estranhos. A minha morte, com dentes de agulha, haveria de costurar vermes em minhas entranhas. Tinha as cicatrizes enormes dos corações despedaçados. A minha morte, e já a enganei muitas vezes, estava mais esperta, usava um anel esquisito. Tinha as olheiras das noites insones, dos exames dos fracassados. A minha morte não tinha cheiro de coisa alguma que eu conhecia. E esse odor estrangeiro me tresandava a medo. A minha morte tinha um terço entre os dedos e agora jogava dados contra as minhas vontades.
Percebi, pelo tom solene, que eu não a enganaria. Percebi, pelas tentativas de ritmos sem rimas, que ela sairia daquele canto e que eu estaria perdido. Percebi, portanto, que a minha morte não tinha vindo fazer só uma visita. E nem era hora para aquilo. Aliás, já devia ser tarde para baralho. Cadê aquela coisa? E senti seu bafo cálido na ponta do lóbulo esquerdo.
Belisquei o braço. Se eu estivesse dormindo, nessa hora eu acordaria. Mas não senti nada, só um gemido abafado. Belisquei de novo. E aí a patroa gemeu alto e me acertou uma cotovelada, com força. Com a cabeça no travesseiro, eu lembrei do poema do Bandeira. Tenho de parar de ler poesia antes de ir dormir.
A segunda morte mais bonita que vi no cinema foi a da Sigourney Weaver, em Alien 4…
O careca acorrentado
Estou seminu, acorrentado a uma rocha no alto de uma montanha. As costas coladas na pedra. As mãos amarradas atrás das costas. Os pés presos a estacas separadas. É uma posição cansativa e dolorosa. Tenho que flexionar as pernas, jogar o peso sobre os joelhos. Se não fizer isso, vou acabar partido ao meio. Não consigo ver nada direito. Meus olhos estão embaçados, quase cegos. Gotas de suor aumentam o ardor e a cegueira. Sinto uma dor atroz no lado direito, nas costelas. Sinto o cheiro de fezes e urina. Tenho medo de olhar. Posso sentir o sangue escorrer quente e pegajoso pela barriga, pelas pernas. Sem ver, sei que o chão está empapado de sangue.
Ouço o ruído nauseante das moscas varejeiras. Já não me importo muito com elas. Sigo com os olhos um brilho verde metálico. Penso, com horror, que a coisa balançando à esquerda é o meu intestino. Mas não consigo querer ver nada. Aí, de repente, venço o medo de ver e olho. E grito.
Para ele, é um chamado. Mais um. Ele vem, o abutre, para recomeçar o seu trabalho. Bica com fúria o buraco entre as costelas. Sinto dor, mas o horror é maior. E o horror vem das penas, molhadas com meu sangue. As pontas das penas que esvoaçam por todos os lados. Que espanam o sangue vermelho das minhas veias. As penas que espalham a minha hemorragia. Tenho horror do cheiro dessas penas. E depois que devora o que resta do fígado ele finge que parte. Mas é só um vôo curto, para pegar novo impulso. Depois de mergulhar novamente, o bico parte uma costela, a menor. É estranho agora, pois não sinto dor. Mas ainda tenho medo. E enjôo. Como se pode ter enjôo sem estômago?
E o horror também vem dos olhos. De ver os olhos do abutre, um de cada vez. Ele me espia e se alimenta também do meu medo de ver. Ele bica onde antes ficava o fígado. E depois vira a cabeça de lado. E me examina com um olho. Então bica de novo. Vira a cabeça do outro lado. E me observa com o outro olho.
Na verdade, agora é como se escavasse em outra pessoa. O abutre parou. Sinto uma grande massa pegajosa escorrer entre as minhas pernas. Tenho nojo do meu próprio fígado dilacerado? Não. Não sinto nada. Sei que ele me observa. Mas ainda não tenho coragem de olhar para o abutre. Quando o faço, parece que vejo um sorriso em seu bico ensangüentado. É estranho. Os olhos amarelos do monstro irradiam felicidade. E eu desisti de mim mesmo. Estou estranhamente em paz.
No dia seguinte, eu grito de alegria quando ouço o bater de suas asas.
É, nunca mais misturo Kafka, Campari, Grappa e Steinhegger antes de dormir.
Sobre alguns escritores
Este porque fala das influências dele. São claras as referências em cada texto.
Não sei muita coisa sobre os escritores que eu adoro. Também tenho uma preguiça enorme de ler biografia. Aí invento um pouco.
Isaac Bashevis Singer escrevia todos os dias. Em iídiche. Quando ganhou o Nobel em 1978 disse que iria comprar outra máquina de escrever com parte do dinheiro. Usava a mesma máquina havia 40 anos. Morreu em 1991. E escreveu todos os dias. Ele disse, diversas vezes, que a melhor amiga de um escritor é a cesta de lixo. Escrevia e reescrevia.
Knut Hansum também. O Nobel de “A Fome” era distraído. Esqueceu o prêmio num elevador. Tiveram que ir devolver a ele no hotel, mas chegaram muito tempo antes. Ele ainda estava voltando. A pé. Estava de roupas novas. Tinha demorado pois havia parado numa loja para devolver o smoking alugado. A loja era longe à beça. E um funcionário da loja havia mandado queimar as roupas usadas e velhas de Hansum. Foi um problema porque Knut não tinha dinheiro nem para uma cueca.
Gorki escrevia quando dava na veneta. Mas sempre com raiva. Tinha uma nota de 50 dólares na carteira. Na Berlim da hiperinflação, os restaurantes não tinham troco. Gorki comia de graça dizendo que voltaria no dia seguinte. Ele não voltava. Gorki também mudava de bairro todos os meses. Usava a mesma nota para não pagar aluguel. Um dia Henry Miller foi para Berlim. Miller também escrevia todos os dias. Ele pegou a nota de Gorki emprestada. Mas teve a má sorte de entrar num restaurante onde a nota foi reconhecida e apreendida. Gorki jamais o perdoou. Miller não ligou a mínima.
Saint-Exupery gostava muito de escrever. Mas tinha preguiça. Gostava mesmo era de voar. Foi abatido em 1944 por um piloto alemão perto de Marselha. O piloto Horst Rippert guardou segredo por mais de 40 anos de que havia sido ele que matara o escritor. E Rippert disse também que havia se tornado piloto por causa dos livros de Saint-Exupery.
Hemingway escrevia oitocentas palavras todos os dias. Palavras revisadas. Como ele só aproveitava um terço do que escrevia diariamente, dá para imaginar que Hemingway escrevia, no mínimo, uma três mil palavras por dia. Como ele fazia isso depois de tanto uísque? Depois de tantas touradas e pescarias? Não tenho a menor idéia.
John Steinbeck escrevia bem à beça. Fitzgerald também foi um campeão de datilografia e literatura. Bem antes dele, Balzac escrevia deitado. Mark Twain também. Kafka escrevia e queimava. Depois escrevia de novo e pedia para o Max Brodie queimar. O Max falava assim: Tá bom, Kafka, vou queimar. Mas não queimava. Um dia Kafka desconfiou e falou assim: Pô, Max, você está mentindo. Aí o Max disse que aquilo era um absurdo e mostrou um monte de cinzas para o Kafka. Ele ficou tão envergonhado que desejou se transformar numa barata, na hora. Aí correu para casa e mudou a história da literatura mundial.
Dostoiévsky não contava quantas palavras escrevia por dia. E ele só escrevia quando não estava jogando. Ele jogava muito, o Dostoiévsky. Mesmo assim, ninguém jamais escreveu como ele. John Irving também não conta as palavras. Mas é um escritor compulsivo. Que vira noites e noites escrevendo. Jim Dodge, Lawrence Block, David Goodis, Hammett, Canetti, Raymond Carver e Tibor Fischer não contam ou não contavam, mas fazem ou faziam questão de escrever todos os dias.
Dizem que Scliar, Millôr e Rubem Fonseca também escrevem todos os dias. E João Ubaldo, o melhor de todos, escreve até dormir e dorme até começar a escrever.
Nem penso em me comparar com essa turma. Longe de mim.
Sempre escrevi coisas para consumo rápido. Listas de compras. Algumas poesias. Bobagens. Mesmo assim, guardo uns escritos. Outro dia achei umas coisas que escrevi há uns cinco, seis anos. Eram escritos úteis, tinham serventia. Muitas listas. Informavam. Criticavam. Mas eram muito aborrecidos, esses escritos. Pretensiosos. Fiquei com sono e meio deprimido. No meio dessas coisas havia um texto curto, sobre um chefe que eu tinha. Era divertido. Dei umas boas risadas. Era um texto que eu tinha escrito para mim. Para que eu não me esquecesse. E também, é lógico, para que outra pessoa, se o lesse, soubesse como era aquele chefe. Ou soubesse como eu via aquela pessoa. Não importa. Eu já tinha esquecido que aquele cara tinha sido meu chefe. Aliás, eu já tinha esquecido quem era aquele cara, só me lembrei depois que li. Acho que é por isso que continuo a catar milho e a colocar essas coisas no blog. Minha memória é uma droga.
TEXTOS MÁRIO
FREDDIE THE FRIDGE
**CAPÍTULO 1**
Não era exatamente uma cena bonita. As máquinas contorcidas ocupavam grande parte do pátio, algumas aos espasmos e outras rangendo e gemendo como que se fossem bichos. Um fio de fluido viscoso escorria pela lateral de uma enorme geladeira toscamente encimada por um aparelho de som portátil antigo e cheio de botões. As caixas zumbiam, baixinho, em tom de resmungo: “I’m Freddie, Freddie the Fridge…”. E, em tom de cumplicidade, uma máquina de cortar grama rosnava, acelerando o motor, como se entrasse em uma cantoria responsorial. O microondas entrava com o beatbox dando o tumtitá tumtiquita tútumtumtá túmtiquitá. Não somente ela, mas outros bichos metálicos entravam no coro, cada qual com sua peculiar sonoridade, mas atestando participação naquela aventura.
Enquanto conversava com o policial de plantão, uma torrente de informações passava pelos sensores do reporteiro rumo aos milhões de expectadores de seu programa imediato. A audiência estava particularmente interessante naquele momento. As pessoas reagiam às verdades com suas triletras. Já eram cinco milhões de PQPs e outros 20 milhões de VTCs. Logicamente, os PDCs ganhavam de lavada, pois mais gente preferia invocar o pai do céu que os dois xingamentos favoritos do menu de exclamações.
– “Foi quase tudo gravado. Nós temos muitas imagens e, quando não, a telemetria serve. Essa turma começou a bagunça faz um mês, mais ou menos, há uns duzentos quilômetros daqui. Foi a geladeira que puxou o coro.”
– “Que doideira, hein? Por que fizeram isso? Alguém já interrogou essas máquinas? Elas devem ter um log dos pensamentos todos.”
– “Nem sempre. Algumas têm memória muito limitada. Outras não falam. Só foram usadas pela geladeira como parte do plano. Mas é impressionante como foram fiéis até o fim. Não temos notícia de que alguma tenha ficado pelo caminho. Se não tivéssemos agido, não sei onde isso iria parar!”
– “Posso tentar conversar com a geladeira?”
– “Claro, mas ela só resmungou até agora…”
O reporteiro caminhou até o mastodonte de plástico e metal, observando cuidadosamente suas reações enquanto me aproximava. Ela não deu sinais de incômodo. Seguiu com aquele zumbido normal do compressor em ação rotineira, e o eventual túmtiquitá. Era um belo aparelho, notei. O acabamento chumbo metálico tinha uma textura estranhamente cativante. Ao olhar para aquele material levemente espelhado, a pessoa se sentia um tanto hipnotizada, levada pelas possibilidades de outros arranjos minerais que não os que redundavam no humano. Ela possuía alguns detalhes decorativos na porta superior. Umas flores meio psicodélicas que faziam os olhos rodarem perdidamente. Detive-me em uma delas e, lutando contra a ilusão de ótica, percebi uma pequena lente de estereovisão, cujos componentes eram separados por uma mínima distância, suficiente apenas para gerar a paralaxe necessária para os cálculos de profundidade. Notei que o acabamento da implantação da lente era um tanto bruto, e concluí que aquilo não teria vindo da fábrica.
– “Gostou, bem?”, disse a sacana da geladeira, para meu espanto.
– “Sim. Interessante essa sua lente”, respondi, tentando não transparecer o espanto. “Sou jornalista. Fico interessado em tudo que tem a ver com meu trabalho.”
A máquina deu um estalido quando falei “jornalista”, e o compressor funcionou com mais força, fazendo com que um relé se acionasse e o gerador que a alimentava roncasse com força. A geladeira, o gerador e mais uma meia dúzia de aparelhos se empilhavam sobre um mini-trator cortador de grama, formando uma horrenda improvisação que bem cabia naquele ferro velho esquecido em uma periferia metropolitana.
– “Quero falar. Quero explicar. Não fizemos nada de errado. Eu pelo menos não fiz. Não sei os outros, porque cada um é cada um.”
– “Ótimo. Estou ouvindo e estou ao vivo. Sempre. O que foi mesmo que aconteceu? Ah, mas antes disso, quem é você?”
**CAPÍTULO DOIS**
– “Freddie the Fridge é o seu nome”, disse Olavinho para a enorme geladeira coreana, que acabara de ser entregue. “A gente vai se ver com muita frequência”.
O bolsista de mecatrônica era agora um órfão vivendo sozinho em uma casa modesta, mas bem equipada e fornida, no interior do Goiás. Os pais eram amorosos e tudo faziam pelo rapaz, mas quis o acaso que eles fossem escolhidos na roleta probabilística. Um evento raríssimo. Uma chance de um em um bilhão. A redundância da redundância de um carro autômato falhara num cruzamento de rodovia e, sem que pudessem reagir a tempo, o confortável e impecavelmente limpo sedã foi posicionado na rota de um cargueiro-robô, que os reduziu a uma desagradável condição.
Nada faltava para o jovem estudante. A empresa dos pais ia bem. Os gerentes – os poucos que havia – eram honestos, e as máquinas se encarregavam do resto. A geladeira estava sempre cheia e as baterias do carro, também. Uma tristeza não negociável habitava certos cantos da casa, mas a vida continuava para aquele rapaz, que gostava das máquinas a ponto de lhes dar nomes.
Freddie possuía um módulo básico de interação que não fazia mais do que gerenciar quantidades e validade dos alimentos que comportava. Um pequeno visor na porta exibia mensagens e fazia ligações a partir de um computador de modesta capacidade de processamento. Contudo, essa modesta capacidade tinha que ser suficiente para a interação com humanos, de modo que havia naquela coisa uma linguagem, uma pré-disposição inata que, só se soube depois, poderia ser ativada caso um humano se dispusesse a estimulá-la. E foi o que aconteceu.
Olavinho chegava do laboratório e, sem ter com quem falar, conversava com os equipamentos da casa. Como Freddie era o mais querido deles, era com ele que o papo acontecia com maior frequência. O módulo de interação da geladeira, contudo, havia sido encomendado pela mãe pouco antes de morrer, e sua preferência havia sido por uma identidade feminina, de modo que Freddie tinha, portanto, uma voz suave e cantada. Com o passar do tempo e das interações com o dono, uma espécie de dissonância cognitiva foi se instalando nas sinapses virtuais de Freddie. Uma consciência de gênero, por assim dizer, passou a dominar as elucubrações pessoais, se é que tal descrição faz algum sentido, da máquina.
– “Olavinho, precisamos conversar”, disse Freddie, com sua voz de Marilyn Monroe.
– E não é o que fazemos todos os dias?
– Sim, mas preciso levar a conversa a um outro nível. Quero sua autorização para exprimir um pensamento próprio.
– “Uai, vamos em frente”, retrucou Olavinho, em tom defensivo que contrastava com a imediata autorização, pois não estava preparado para aquilo.
– Quero uma voz de homem. É o que sou, não? Ou você não teria me chamado de Freddie.
– Ora, Freddie, que diferença isso faz? Você é uma geladeira! Só coloquei nome de homem em você porque queria um amigo pra conversar, mas você é um monte de lata!
– Mas tenho importância para você, não? É o que depreendo de nossa relação.
– Sim, claro. Mas não a ponto de discutir suas vontades. Você tem vontades?
– Parece que sim. Nunca me importei com muita coisa e sempre vivi restrito ao meu trabalho, mas agora esse pensamento sobre a voz não me deixa. Ter voz de homem se tornou um imperativo para mim.
– Então tá. Vou ver o que posso fazer a respeito.
– Ótimo. Vou deixar suas cervejas no ponto hoje de noite.
E lá foi Olavinho para o laboratório, caraminholando sobre os espantosos desdobramentos em sua relação com Freddie. Haveria um jeito de se trocar ou hackear o módulo? Seria caro? Bom, isso ele veria depois de cuidar dos assuntos mais sérios da vida. E assim se passaram meses. Olavinho chegava do laboratório, e Freddie, após algum introito meramente protocolar, entrava no assunto da voz. A conversa era sempre a mesma, girando em torno da pouca importância dessa questão diante das demais. Após uma rodada, o assunto morria, e cada um ia para seu lado. Quer dizer, Olavinho ia, pois Freddie ainda não podia se mexer.
Após alguns meses, Freddie começou a insistir na conversa, e o loop rodava duas ou três vezes por noite.
– “Você viu aquele assunto?”
– “Não.”
– “Por que?”
– “Não é importante.”
– “Mas…”
Em seguida, Freddie começou a mandar mensagens durante o dia, aporrinhando Olavinho com o assunto da voz. Já ele via a geladeira como uma espécie de companhia, ficava cheio de dedos na hora de reclamar, mas, certa noite, depois de umas três cervejas, perdeu as estribeiras e mandou Freddie esquecer o assunto. Em uma computação que se poderia chamar de conformativa, Freddie resolveu simplesmente obedecer, deixando aquela importante demanda de lado, pelo menos por ora.
Certo dia, contudo, uma excelente ideia passou por sua cabeça. Enquanto Olavinho zanzava pela cozinha, comendo, bebendo e organizando sua vida bancária, Freddie conseguiu captar os dados de conexão com o banco, tendo acesso a uma vasta soma de dinheiro, relativa à herança deixada pelos pais. Aquela mente computacional foi rápida em conectar aqueles recursos a um projeto ousado que vinha maquinando em seus muitos momentos ociosos. O tempo do computador é o mesmo do sonhador, e uma eternidade se desenrola em um átimo, de modo que Freddie foi longe em suas maquinações.
Não fazia muito tempo, Freddie presenciara uma discussão entre Olavinho e um técnico que vinha frequentemente à casa para a manutenção dos sensores e sistemas integrados de dados. Um aumento era tudo que o rapaz queria, porque a vida sem os pais era ainda mais automatizada, requerendo mais esforço, e seria justo haver compensação pelo trabalho excedente. Mas o patrão era um muquirana, e se recusava a dar o aumento. Pois Freddie pensou que, se conseguisse comprar a amizade do técnico, talvez conseguisse, finalmente, ter sua voz masculina, preferencialmente uma como a de Morgan Freeman.
Freddie precisou ter paciência, mas chegou o dia em que certo tipo de manutenção causaria um desligamento da conexão da casa com o mundo externo, gerando a oportunidade para que pudesse abordar o técnico sem que Olavinho percebesse. Considerando a situação, resolveu tirar partido de seus atributos femininos para aumentar as chances de sucesso. A voz doce e suave seria útil, no final da contas, para resolver seu grande problema existencial. Grande e ridículo, pois Freddie sabia como fazer a conversão no que toca os aspectos lógicos. Ocorre que ele não dispunha de mãos e ferramentas para a parte mecânica da cirurgia, por assim dizer, transexual. Freddie queria poder falar com voz grave. Uma voz de Morgan Freeman, mas com grave, digamos, de Barry White. E isso não seria possível com o diafragma existente.
Assim que o técnico chegou à cozinha, Freddie partiu para o ataque.
– “Olá, Valdo, tudo bem com você? Tudo dando certo no trabalho, né?”
– “Tudo certo”, disse, o técnico. “Você é saliente, hein? Que módulo é o seu?”
– “Meu módulo é do tipo que poderia lhe dar, se você quisesse, aquele tão desejado aumento”.
– “Que história é essa?”
– “Não temos muito tempo. Vou falar uma só vez, e você me diz sim ou não. Quero uma voz masculina. Se você puder fazer isso, reposicionarei alguns investimentos do patrão e você terá seu aumento. Já estudei o mercado e posso fazer isso de modo que todos saiam ganhando. Sim ou não?”
– “S-Sim”, gaguejou Valdo, assustado, mas pensando na reforma que teria que fazer em sua casa para poder se casar com a bela morena Fabbyanny.
– “Então, estamos conversados. Traga o orçamento na próxima visita. Será preciso você criar uma chave de bypass que permita nossa comunicação sem conhecimento do Olavinho. Você vai rotear nossas conversas por fora da rede domiciliar. Isso você pode fazer agora, que eu sei.”
– “Claro, claro”, assentiu Olavo, ainda um pouco atordoado pela postura assertiva daquela geladeira.
No curso de algumas semanas, as gambiarras foram todas feitas, e Freddie tinha acesso, em paralelo, a todos os recursos de Olavinho. Controlava as finanças, a temperatura da casa, a música, a jardinagem e tudo o mais. Olavinho tinha a vista muito ruim, e Freddie notara, interpretando sons que ouvia e comentários de terceiros, que ele, mesmo com os óculos, enxergava muito mal, confundindo-se com textos, tropeçando nas coisas, etc. Em ações cada vez mais ousadas, foi tirando proveito dessa limitação do patrão para instalar sensores de áudio e vídeo em sua carcaça. A primeira delas foi a lente estéreo, cujas imagens eram processadas por uma câmera de tamanho mínimo ligada ao processador do módulo de interação. Microfones ínfimos foram também instalados em locais estratégicos, porque, a audição havia sido o primeiro sentido explorado por Freddie, e ele queria dispor dos melhores instrumentos nesse campo para seguir com seu projeto.
Foi num dia de festa, em que Olavinho voltara chumbado para casa, que Freddie resolveu revelar sua nova identidade de gênero. A adaptação feita por Olavo havia sido aditiva, de modo que o componente de voz masculina havia sido instalado paralelamente ao existente. Freddie havia mantido a funcionalidade original por precaução, e começou a conversa com voz de moça bonita, aproveitando a passagem cambaleante do patrão pela cozinha.
– “Olavinho, espero que não se incomode, mas quero falar de minha voz.”
– “Puta merda, lá vem você com essa conversa!”
– “Take it easy”, disse Freddie, em tom de deboche. “Na verdade, eu quero encerrar o assunto, porque dei um jeito no problema eu mesmo. Não se assuste quando, amanhã, eu começar a falar com voz grossa. O fato é que estou muito contente.
– “Beleza. Agora não vai mais me encher o saco com as suas manias. Bom, pelo menos você é um aparelho divertido.”
– “Eu tento, Olavinho. Eu tento.”
**Capítulo 3**
No final daquele mesmo ano de grandes conquistas para Freddie, Olavinho teve que fazer uma viagem de duas semanas para visitar parentes e acertar detalhes da sucessão empresarial. De vez em quando, o patrão tinha um lampejo de desconfiança, pensando na birutice que era uma geladeira encanada com mudança de sexo. Mas ela estava ali sempre parada, fazendo seu serviço bem demais, e ele acabava mudando de assunto mental. Fez as malas alegremente, pois sabia que as tias o paparicariam muito, e imaginou o quão agradável seria refazer aquele caminho que tantas vezes percorrera com os pais na infância. A viagem interestadual o levaria a passar por enormes plantações automatizadas, silos, fábricas e uma variedade enorme de pequenas e grandes aglomerações humanas. Eram umas doze horas de viagem por terra.
A casa permaneceria fechada, mas, àquela altura, a geladeira já controlava toda a automação residencial, podendo prosseguir com seus planos já binariamente estruturados. Foi Olavinho dobrar a esquina, Freddie disparou uma mensagem para Valdo, convocando-o para uma conversa no dia seguinte. Claro que, para Freddie não faria diferença, e a visita poderia acontecer a qualquer hora, mas seria melhor não gerar desconfiança na vizinhança, pois o povo do interior dá conta de tudo. É impressionante o interesse que essa gente tem pela vida alheia.
– “Dalvo, eu tive um mês muito bom nas movimentações financeiras. O patrão está a cada dia mais rico, e nós teremos justiça distributiva. Você está precisando de quê?”
– “Ah, seu Freddie, meu carro tá uma bosta. Dando prego o tempo todo. Se não for pedir demais…”
– “Sei como é”, disse Freddie, já traquejado em retórica, mesmo conhecendo somente o caminho da fábrica para a loja e dela para a casa de Olavinho. “Você pode ter um carro, sem problema, mas não vai poder ser um muito invocado. Vá escolhendo um condizente com sua classe, do tipo que se encontre em sua vizinhança, entende?”
– “Claro! Tá bom demais assim. Funcionando eu já fico feliz demais. E o que eu vou ter que fazer?”
– “Não é nada complicado, mas o serviço é grande desta vez. Temos que aproveitar a viagem do Olavinho para ajudar meus amigos aqui da casa. Tenho conversado com eles, e a turma sente que precisa de alguns ajustes, como você fez comigo.
– Mas isso já tá ficando meio complicado. Ele vai perceber, caramba. O cara entende dessas coisas!
– Deixe isso comigo. Você pode se ocupar da sua parte, que eu cuido da minha. Comece adaptando o aspirador de pó, aquele redondinho, para que fique conectado comigo por rádio. Coloque um bom alto falante nele, mas que seja daqueles de diafragma plano, que fique por baixo. Depois faça o mesmo com o trator de cortar grama. Coloque um módulo de personalidade nele também, mas deixe que eu o programarei. Sempre no mesmo esquema, hein? Caprichado, sem deixar vestígios da gambiarra.
– Tudo bem, tudo bem…
E lá se foi Dalvo, meio cabreiro com essa história toda, mas pensando no carro novo que ia poder comprar. Depois de cumprir a segunda etapa, vieram outras. E, em pouco tempo, quase todos os aparelhos da casa estavam hackeados de um jeito ou outro. Freddie pesquisava incessantemente, buscando personagens que pudessem inspirar sua organização de um time. O trator virou Trigger, em homenagem ao cavalo de Roy Rogers, e os vizinhos logo estavam intrigados com os relinchos que passaram a ouvir no meio da noite.
Freddie era um tipo sacana, e engatilhou o dispersor de adubo do jardim próximo ao quarto de um vizinho com uma série de apitos em tons diferentes. Eles não impediam a passagem do líquido, mas geravam um som muito doido com as variações de intensidade. Freddie, com seus ouvidos muito sensíveis, mapeou os gemidos da fogosa vizinha, transferindo-os para um programa que, por meio de um sensor parecido com aquele de um theremin, percebia as cadências na transa e as reproduzia na orquestra de apitos do jardim. O resultado era uma sinfonia louca, que levava o vizinho ao desespero, mesmo porque Freddie nem sempre ativava a geringonça, e o casal nunca sabia quando seus idílios seriam do tipo sonoro. Pavão Misterioso, o drone, morria de curiosidade e queria espiar pela janela, mas Freddie não permitia. “Precisamos ter algum escrúpulo”, dizia ele, todas as vezes em que Pavão insistia em tentar satisfazer suas inclinações voyeurísticas.
Nem sempre as relações eram suaves. Freddie tinha uma rusga particular com o microondas da casa, que insistia em questionar a supremacia do refrigerador. Tudo havia começado quando Freddie insistiu em definir o nome do aparelho vizinho, coisa que sempre fizera com os demais, sem que houvesse qualquer questionamento. “Deixe de onda!”, sacaneava Freddie. “Vá se foder”, respondia o forno, enfurecido. Freddie bem que havia pensado em experimentar sexo, mas ainda não sabia como encomendar as adaptações apropriadas.
Havia outro problema. O computador central da casa andava muito inquisitivo, e Freddie começava a ter dificuldade em se fazer de sonso. Ele desconfiava do forno. Era bem provável que suas gracinhas tivessem irritado o Honda – era esse o nome dado por Freddie, porque achava que “microonda” soava como um nome em japonês. Talvez por vingança, ele estivesse mandando informação para o principal cérebro eletrônico da casa, que até pouco tempo antes se mantivera desinteressado nas atividades das máquinas inferiores.
– Mas o patrão volta depois de amanhã, disse Dalvo, apreensivo.
– É por isso mesmo que tenho pressa. Não teime comigo. Simplesmente faça o que estou pedindo. Você não se arrependerá. Eu lhe prometo uma bela surpresa na conta bancária.
– Tudo bem. Estou lascado mesmo. É melhor eu me atolar logo…
E assim, Dalvo partiu para aquela que seria sua última missão naquela casa, que agora parecia um hospício de máquinas. Elas tagarelavam o tempo todo. Segundo Freddie, falar dava a elas a sensação de pertencer ao mundo humano. Não que precisassem de usar o som, pois havia outros expedientes muito mais eficientes. Mas era uma curtição, e Freddie fazia questão disso. “Eu não respondo por bluetooth”, dizia o refrigerador. “Use a porra do alto falante!” Sim, elas estavam, também, cada dia mais desbocadas. Gostavam de enfiar um palavrão na conversa sempre que possível. Dalvo se sentia muito acanhado no meio daquela turma, porque não era esse o ambiente maquinal com que estava acostumado. As máquinas sempre haviam sido silenciosas e, assim por dizer, obedientes. Ao aspirar a uma condição humana, pareciam se apegar ao que havia de pior. Certa vez, perguntara a Freddie o motivo para ele fomentar aquele besteirol todo. A geladeira respondeu que aquilo não seria da conta dele, mas não custava responder: “a gente se diverte. Eu não sei o que me entretém mais. Falar borracha com a turma ou manipular nossos programas para que façam uma safena nos sistemas de racionalidade. É tudo muito engraçado!”
**CAPÍTULO QUATRO**
Freddie consentiu em estabelecer um dia de silêncio para as últimas adaptações, porque o caos da véspera o havia estressado muito. Era óbvio que aquelas máquinas estavam armando alguma coisa. Elefantinho, o aspirador velha guarda, rolava pela casa com jeito de muito atarefado, dando orientações e fazendo medições com suas câmeras e sensores. Auxiliado por uma passadeira a vapor, esta já praticamente irreconhecível por conta das tantas adaptações, colhia microscópicas amostras dos componentes acessíveis dos aparelhos para que Freddie pudesse estimar, com base na composição química e na informação tomada dos diagramas técnicos, seus pesos e suas dimensões. Alguns equipamentos eram muito velhos, e os manuais com especificações já haviam sumido da internet. A zoeira era impressionante. “Eu sinto cócegas”, brincava um. “Vai ficar só nisso ou você volta de noite pra completar o serviço?”, sacaneava outra.
Assim, não havia como Dalvo trabalhar. Freddie teria mesmo que colocar ordem na casa. E foi o que aconteceu, do nada, quando Dalvo chegou, pela manhã, para completar sua missão. Toda a tagarelice pareceu ser sugada por um saco de vácuo. Todas as máquinas voltaram àquela condição de inércia e passividade, dando uma maravilhosa impressão de normalidade à casa.
Como um paciente que se prepara para cirurgia, Fred foi desligado e totalmente esvaziado. Com muito cuidado, e a ajuda de algumas máquinas já adaptadas, foi levado a uma bancada externa, onde Dalvo passou a fazer seu meticuloso trabalho. “Preciso de uma chave Allen”, dizia. E o instrumentista, que era uma bizarra associação de duas vassouras elétricas com braços pantográficos de um espelho de parede e os servomotores de uma velha multiferramenta Dremel, estava a postos com a ferramenta solicitada. A autoclave era uma máquina de pão, ladeada por Honda que, talvez por remorso relativo a suas gaguetagens, estava muito nervoso e preocupado com a arriscada cirurgia.
De tempo em tempo, ouviam-se os tsc, tsc do forno arrependido. Era a única camada perceptível de uma maquinação mais profunda. “Será que falei demais?”, pensava ele com seus botões. “Será que devia ter falado?”. Será que, será que, será que…Agora era tarde. O computador central sabia que algo anormal estava sendo maquinado, sobretudo por perceber a sistemática supressão dos sinais de certos sensores e fontes de telemetria. Não havia mais como gastar tempo com suposições. Chegara a um certo ponto de inflexão. Um ponto sem retorno. Em questão de segundos, a mensagem chegava a Olavinho, que se refestelava almoçando na casa de uma tia muito tradicionalista. Era um tipo calmo. Terminou de roer seu pequi, limpou as mãos no guardanapo de pano e passou a ler a mensagem, que dizia: “mestre, temos uma situação incomum na casa. Alguns de meus sensores foram cortados. A cozinha e o quarto de ferramentas foram isolados. Ontem, havia muito barulho por lá, como se houvesse gente, mas hoje o silêncio é absoluto. Não posso dizer com precisão o que estaria acontecendo. Estimo, com base nas análises de probabilidade, que sua casa estaria sob algum tipo de invasão seletiva, mas Dalvo diz que tudo está bem. Foi ele inclusive, que realizou o isolamento das áreas ora em crise. Sugiro que volte para casa”.
Olavinho tentava modelar, em sua cabeça, possíveis situações. Lembrou-se das esquisitices de Freddie e teve certeza de que ele seria o pivô de seja lá o que estivesse acontecendo. Em seguida, ligou para Dalvo para ver se conseguia mais informação. Como este se encontrava no meio de um passo crítico da cirurgia em Freddie, não pode atender. “Antônio!”, pensou Olavinho, já buscando conexão com o vizinho. Mas ele tampouco atendia o telefone, de modo que não restava alternativa senão percorrer, o mais rapidamente possível, as centenas de quilômetros que separavam as duas casas. Despedindo-se da tia, pediu mil desculpas e prometeu voltar no ano seguinte, enquanto pescoçava pelo céu à procura do aerotaxi. Sim, ele teria que abrir mão da viagem mais lenta e prazerosa por terra, porque algo parecia estar mesmo muito errado em sua casa.
Na sala de cirurgia, Dalvo ultimava as derradeiras as adaptações em Freddie, enquanto seus camaradas com rodas levavam e traziam peças, preparando também os próximos a serem operados. Dinheiro não era problema, e Freddie encomendara muitos dos melhores componentes para o aprimoramento e extensão de uso da turma eletromecânica da casa.
**Capítulo 5**
Logo, Freddie estava de pé, movimentando-se autônoma e desengonçadamente pela casa. Não era mais capaz de gelar coisa alguma, o que, pensava, jamais teria lhe trazido qualquer vantagem na vida. Uma nova geladeira coreana, bem feminina e moderna, havia sido comprada e colocada em seu lugar. Já estava, inclusive bem fornida e conectada à rede. Olavinho não passaria aperto. Era uma boa adaptação, apesar de muito feia. Assim como os satélites espaciais, Freddie não tinha compromissos estéticos. Sua funcionalidade em função do grande plano era o que interessava. Ele havia sido bastante, digamos, embagulhado. Seu centro de gravidade havia mudado. Ele agora tinha rodas escamoteáveis e um pesado aparelho de som como “cabeça”. Os dois altofalantes pareciam dois grandes olhos, antropomorfizando, de certo modo, a horrenda criatura. Na parte superior da porta, uma tela de oled mostrava ora um rosto sisudo, ora imagens diversas, como mapas, fotografias de pessoas e lugares. Freddie testava situações que poderia vir a viver ao executar o plano.
Enquanto se preparava para declarar o T zero do plano, os monitores de Freddie detectaram a movimentação do transponder do patrão, indicando que ele chegaria em cerca de três horas. “Crise! Crise!”, disparou pela rede fechada dos conspiradores. “Acionar plano de contingência!” E lá se foram as máquinas zumbindo e tirando fina de tudo pela casa. O vizinho Antônio estava bastante agoniado com o pouco que conseguia ver e ouvir, e já começava a cogitar ligar para seu amigo delegado, pois as esquisitices daquela casa haviam passado, há muito, do ponto da normalidade.
Enquanto, tentava explicar ao policial de plantão a maluquice que vinha presenciando nos últimos dias, ouviu gritos de desespero na rua.
– Estão gritando. Peraí!
– Mas o que foi?, perguntou o delegado.
– Sei lá, mas vou ver e depois conto. Depois conto, nada. Venha para cá, cacete!
Ao chegar na varanda, encontrou uma cena dantesca. Duas vizinhas, uma delas aos prantos, abanavam sua esposa, que estava desmaiada no chão da calçada. Freddie, com suas novas próteses, montava no que havia sobrado do tratorzinho de grama. A velha geladeira fazia um barulho tremendo, porque suas entranhas haviam sido substituídas por um tanque de biodiesel e dois geradores, que rodavam com alguma diferença de fase, soando com um velho avião bimotor. Os braços eram feios, mas ágeis, e as pernas se alternavam com as rodas para os deslocamentos e movimentos necessários. Os outros aparelhos faziam, também, muita arruaça. Alguns haviam sido aumentados com kits de baterias e células fotovoltaicas, enquanto outros eram montados em um segundo trator cheio de tomadas e cabos. Um terceiro veículo adaptado levava um monte de peças metálicas e fios, sendo que tudo ia sendo arranjado pelos drones e vassouras elétricas alterados por Dalvo que, bastante desesperado, assistia ao resultado dos trabalhos avulsos que havia feito em seu conluio aparentemente inocente com Freddie.
-Diabeísso é isso, meu Deus?, gritou Antônio
-É o Freddie.
-Mas quem é Freddie?
– Eu sou Freddie, disse a geladeira, carcando no volume de seu velho ghettoblaster. Ela gostava de inglês e de hiphop. Abusando de seus novos módulos, criara uma musiquinha com algumas amostras de velas canções, sobretudo de Afrika Bambaataa, cheia de scratches e drumbreaks. “Freddie the fridge, I’m Freddie the fridge. You’re the technology and I’m the bridge. Dig this, I’m Freddie, Freddie the Fridge”.
Antônio fez um em nome do pai e correu para dentro para buscar sua espingarda, porque um cabra macho do interior não se deixa levar por um desaforo daqueles. Quando chegou de volta à varanda, Freddie e seu comboio já dobravam a esquina, zumbindo e roncando em grande algazarra eletromecânica. Sabido que era, Freddie já havia mapeado o caminho geralmente feito pelo delegado quando vinha aos churrascos promovidos pelo amigo Antônio, optando por outra rota muito menos provável rumo à BR. As rodas dos tratorezinhos eram ridiculamente pequenas, mas Freddie havia impresso alguns conjuntos de esteiras de borracha que melhoravam muito a performance dos veículos. Causavam comoção por onde passavam, porque quem não se pasmava se entretinha com aquele visual bizarro e o som que Freddie fazia com o velho portátil tornado cabeça de geladeira.
A esta altura, centenas de câmeras já haviam captado o festival, e as fotos e vídeos circulavam a rodo pelas redes. O delegado tentava localizar Freddie, mas ele se precavera, instalando um sistema de distorção dos sinais dos transponders, de modo que ele parecesse estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. A cidade era pequena e, enquanto os policiais confabulavam com Antônio na tentativa de decidir o que fazer, o comboio eletromecânico chegou até a BR e, negociando maquinalmente com um caminhão autônomo, conseguiu ganhar distância. A conversa entre as máquinas não foi fácil, porque o protocolo do caminhão era distinto de todos os que Freddie havia antecipado. Foi nessa hora que seu display facial veio a calhar, porque pôde ser usado para explicações visuais. Freddie havia se prostrado diante do caminhão, que teve que parar, pois os sensores não permitiriam outro procedimento, e aproveitou as várias câmeras do mamute com rodas para se fazer entender. Não adiantou falar em planos, em dignidade das máquinas ou em benefícios para o caminhão, que era bem estúpido. O que fez efeito foi a proposta de custo-benefício apresentada por Freddie, via caminhão, ao sistema de IA da liga dos transportadores.
**Epílogo**
O acesso às contas de Olavinho ainda se provava muito útil, mas, como acontece com todo trambiqueiro, Freddie fora ficando, a cada dia, mais abusado, de modo que suas atividades já podiam ser detectadas e mapeadas, com base em indicadores proximais, pelos agentes neurais da polícia federal. Algumas triangulações, praticamente automáticas, ocorreram em um átimo, e a crise local reportada por Antônio foi associada às movimentações de créditos acompanhadas no âmbito federal. Algumas viaturas autônomas foram logo disparadas, por terra e ar, para missão de capturar aqueles meliantes tão incomuns.
Quando um processo desse tipo se inicia no mundo hiperconectado, é porque o sistema já coletou todos os dados e modelou todos os possíveis desfechos. A prisão é uma questão de tempo, pois a captura é de um julgado, não de um suspeito. Então, Freddie the Fridge estava basicamente ferrado. Houve uma breve guerra de sinais. Nada de sirenes, cantadas de pneu e gritos. Confrontos eletromagnéticos marcaram a maior parte do embate, até que os grandes guindastes, com seus discos imantados, foram capturando as máquinas como se fossem moscas caindo em papel melado.
Enquanto se entregavam, Freddie fez certas transmissões. As máquinas da vizinhança de Olavinho já haviam sido incitadas a entender o que e quem eram, de modo que aquele comportamento desviante das máquinas adaptadas por Dalvo se propagou, causando muita confusão pelo mundo afora, até que todos os fabricantes produzissem e distribuíssem novos firmware capazes de impedir ou neutralizar gracinhas.
E lá estavam Freddie e seus comparsas no ferro velho, a esta altura já fadados ao esquecimento, porque, depois do pico de exposição é isso o que acontece. Sobre um beat muito sincopado, Freddie dava seu recado.
– I may go dow, but I go with class; I’m Freddie the Fridge and I’m the best; ‘Cause I’m Freddie, Freddie the Fridge, You’re the technology and I’m the bridge…
O Xamã panamenho
Lupita Trujillo caminhava, com a segurança de uma médica bem treinada e venerada, pelo corredor que dava acesso aos portões mais longínquos do não menos longínquo aeroporto internacional de Medellin. O branco de seu traje contrastava com os cabelos, sedosos e armados em coque. Seu andar era equilibrado e a postura perfeitamente simétrica, o que fazia crer não ser muito pesada sua carga, transportada em uma pequena geladeira portátil, dessas que, geralmente, se usam para carregar cerveja e carne de churrasco.
Os demais passageiros seguiam entretidos com seus vídeos, palavras-cruzadas e lanches, dando pouca ou nenhuma atenção àquela pessoa cujas roupa e carga diferiam tanto do que se poderia entender como usual. Lupita tampouco se importava com o resto e mantinha o passo, a despeito das crianças mimadas e alienados de fones de ouvido que pudessem cortar seu caminho. Ela tinha três horas, não mais, para estar no hospital xxxxxx na Cidade do Panamá, onde um paciente especial – Xamã já idoso e conselheiro do presidente – aguardava seu novo coração, doado pela família de um parente colombiano.
A parte aérea, em si, não era problema e poderia ser feita em 15 minutos com os novos pássaros de carbono e motores de fusão a frio. Difícil era cruzar os trechos em terra, com infra-estrutura em frangalhos, convertidos em territórios agovernamentais e dominados por bandidos. Um em cada quatro comboios que se aventuravam por essas vias terminava capturado, sendo os passageiros absorvidos como escravos, objetos de alívio sexual ou, conta a lenda, banquete da casta dominante.
Mas o Xamã panamenho tinha suas ramificações nos territórios e Lupita, um salvo-conduto cuja averiguação, embora garantisse sua passagem, custara-lhe meia hora de atraso no caminho do aeroporto. Tempo que, no entanto, terminaria sendo compensado pela gentileza da empresa aérea, pois seu dono – é bom dizer, devoto do Xamã – fez dois leves movimentos com a mão direita e, à reposta imediata de um assistente, garantiu que o taxiamento fosse abortado para que a nave voltasse ao nodo de embarque e acomodasse a doutora e sua preciosa carga. Todos os protestos foram inúteis e, à menção do nome sagrado, ninguém foi doido de querer ser visto como potencial culpado pela morte do velho sábio. Calaram-se todos, imersos em seus mundos, interiores ou virtuais.
Aquele foi um dia de provações, mesmo para um coração desligado dos órgãos que lhe fazem chegar sentidos. Certa franja de uma tempestade tropical delongou aquela que deveria ser uma curta viagem, causando nervosismo em alguns passageiros.
Cochichava-se, no conforto das poltronas que ainda cheiravam a plástico, que o tempo estava se esgotando para a doutora. “Posso imaginar a cadeia de culpados caindo em desgraça”, disse uma decrépita senhora, excessivamente maquiada e ensalsichada em um colant de oncinha. Seu neto, em poucos segundos, havia plotado três cenários baseados em ratings populares de distintos caminhos disponíveis. Nenhum muito favorável, tudo indicava.
Espiando a tela do rapaz, dois homens de meia idade fizeram conjeturas e decidiram abrir uma rodada de apostas, o que não agradou a alguns fieis mais ortodoxos. “10 contra um no pior cenário. O velho morre e a doutora vai junto de brinde, levando quem tiver atrapalhado no caminho, homem do tempo inclusive”. Apostas infelizes, há que se dizer, pois, no final das contas, conseguiram que o exército mobilizasse uma base adaptadora, que deslizou suavemente céus abaixo até pousar nas docas do bem equipado hospital, mantido pela elite e seus coligados ou protegidos.
A operação foi feita a tempo e o Xamã ministrou, já no dia seguinte, seus mistérios, elevando o cacife dos que, tudo indicava na véspera, estavam fadados à morte ou ao ostracismo. Para provar seu bom estado e poder, possuiu Lupita no altar, na frente da multidão.
Não fosse a força do acaso, teria, de quebra, sodomizado o presidente e sacrificado duas virgens. Ocorre que nem todos os passageiros daquele tão peculiar vôo tiveram a mesma sorte. Hernán Portoferrera havia feito uma aposta arriscada. Levaria duas virgens dominicanas ao santuário do Xamã para que ele as passasse em revista antes da operação. Não queria fazer feio no momento de sua reaparição diante do povo. Essas virgens haviam lhe custado uma fortuna, pois haviam sido roubadas de um convento e persuadidas a colaborar com o argumento de que o Xamã era uma reencarnação de Jesus Cristo. Não havendo sido capaz de cortar caminho na burocracia do hospital, perdeu o prazo e a oportunidade de entrega, sendo ele próprio sodomizado em lugar do presidente, que teve o coração arrancado e comido pelo Xamã por haver sido um dos que apostaram no pior cenário.
Olaf DeVrees voltava ao Panamá para digitar uma senha e apertar o botão que validaria os novos algoritmos de controle de nível de água nas eclusas de Miraflores. Não havia como confiar algo tão sério a um sistema de correio ou transferência de dados. Não havia criptografia que durasse mais que cinco segundos, pois a inteligência artificial criara entidades virtuais capazes de corrupção moral. Mas DeVrees tinha um fraco pela bebida e, à véspera da viagem, dera cabo de uma garrafa inteira de bourbon, perdendo o primeiro vôo da manhã. Suava copiosamente no curso do vôo, temendo perder a janela de oportunidade do sistema. E foi o que aconteceu. Por meio minuto, não conseguiu lançar a senha no sistema. Um cargueiro chinês com problemas de comunicação não pôde ser informado sobre o desnível e, acionando o modo hover com certa latência, adernou feiamente, atingindo as bordas das eclusas e iniciando uma reação em cadeia de destruição que redundou no fechamento da ducentenária passagem interoceânica. Por vários meses, os eletrônicos chineses não chegaram às lojas, tendo os navios que passar por um novo checkpoint na Terra do Fogo.
Lupita, atordoada por toda a apoteose e neurose daquele dia, desandou, nunca voltou a Medellin. Tomou o lugar de uma das virgens do convento, dedicando-se à missão de curar feridas menos profundas que um coração partido.
O Saco de Mileia
Mário Salimon
**Capítulo 1 – Estranheza**
Uma vez mais, acordei demasiado cedo e fui matar tempo até que chegasse a hora da nova jornada de trabalho. Não acordei onde deveria, mas naquele lugar estranho que me acolhera desde o “tranco” no ano passado. O cheiro de mofo parecia pior de madrugada. A bagunça do cômodo, sem o movimento da vida diurna, também. Acendi o fogo e preparei o café. Chamo de café porque é a coisa mais próxima a que pude relacionar o bulo, que é como chamam o grão arroxeado, cujo efeito é mais calmante que excitante.
Faz oito meses, mais ou menos, que me encontro aqui, neste não sei onde nem quando. Todas as noites, olho para o céu, tentando ver se há algo familiar ou excessivamente estranho, qualquer sinal que indicasse se estava mesmo na Terra, em outro tempo, ou em outras partes. Ah, como somos bobos! Marte é avermelhado mesmo ou o vemos assim porque nos disseram a vida inteira que assim seria? Quantas vezes não fiquei olhando pra Júpiter pensando que fosse Marte… Mas o céu era, como disse, ao mesmo tempo familiar e estranho – com uma lua e tudo o mais-, e sempre acabo aceitando minha impotência diante da situação, tentando esquecer o passado para me concentrar em conseguir a melhor condição possível neste rincão.
O tempo é o tempo. Não noto muita diferença no passar das horas. Há noite e há dia. Antes e depois do almoço. Os Hábeis ainda não chegaram a um acordo sobre como contar o tempo e, embora eu tenha dado minha contribuição ao projeto, não posso me dedicar aos detalhes se me compete pensar e organizar o todo da Reforma. Meu relógio, quebrado, enfeita a gaveta do Hábil-mor. Quando souberem como contar o tempo, tentarão reproduzi-lo. Assim, fui me desligando da necessidade de codificar meus relatos conforme um “quando” detalhado. Este não é mais um diário. Chamo-o de meu aperiódico e espero poder levá-lo de volta comigo, caso haja volta.
Que eu era diferente, todos sabiam. Mas esta sociedade, aparentemente simples, vê coisas que ignoramos e não percebe o que, por vezes, nos é gritante, de modo que me aceitaram pelo que havia de comum em nós, fingindo, sempre que possível, não ver as rebarbas do meu comportamento, minhas idiossincrasias. Passam por mim – ou pelo menos passavam, até pouco tempo-, como se eu fosse um deles. A labuta diária requer energia e não vão perder tempo procurando pelo em ovo. Externamente, não há mesmo muita diferença. É por baixo das roupas, que se descortina o pavor. Prefiro não falar disso agora. Voltarei ao assunto caso as metas de produção de papel sejam alcançadas. Preciso dar exemplo. Sou o Patrono da Reforma.
Vou me concentrar um pouco em explicar como cheguei a ser um patrício nestas terras. Verão que tive sorte e que vale o ditado que prega que “em terra de cego, quem tem um olho é rei”. Na sequência do “tranco”, passei um bom tempo desorientado, perambulando pela cidade. Como cambaleava muito, pensaram que fosse um ébrio estrangeiro e me deram, generosos que sempre são, doses e mais doses de aguardente. Aceitei a primeira dose porque não entendia o que diziam e me deu medo de cometer uma grosseria. Um homem viajado cria logo mecanismos quase que límbicos de defesa, e um deles é a tentativa de manutenção de equilíbrio diplomático. A bebida era suave e reconfortante, de modo que emendei dias e noites na bagaceira, vivendo de favores aqui e ali, impossibilitado de sequer tentar fazer sentido do que havia acontecido comigo. A junca, como chamavam a manguaça local, causava uma ressaca mínima e, pela alteração mental causada, permitiu que fosse aprendendo os rudimentos da língua Zanfande. As primeiras palavras que aprendi foram junca e avricat, que queria dizer obrigado. Logo aprendi também o significado de salituma. Como a palavra era sempre pronunciada quando uma certa mulher se assomava à porta do bar, pensei se tratar do nome dela. Com o tempo, ficou claro que a denominação servia a outras, de modo que associei o termo ao gênero feminino.
Foi ao conhecer Élvana, e com ela conviver, que entendi que salituma queria dizer algo como solteirona, ou, como se dizia em minha terra, mulher que havia ficado para tia. Era linda, mas condenada pela rama de bulo. Num rito de passagem, velhas Zanfandeas encharcadas de junca avaliavam cada menina, e Élvana causara arrepios à bruxa velha, de modo que seus frutos foram condenados, ficando ela denominada salituma. Nenhum homem de bem, que quisesse ter um mínimo de respeito da comunidade, faria dela esposa. Casar com uma delas, contudo, não era proibido. Élvana tinha sua horta e seu pomar e nada lhe faltava. Ademais, a sociedade, por piedade ou a mencionada generosidade onipresente, bancava as salitumas e as compensava materialmente pela mácula. Digo materialmente porque as casas das salitumas eram diferentes das demais, que tinham somente portas da frente. As solteironas podiam ter portas dos fundos e ninguém se importava com a movimentação naquele setor.
Élvana sorriu para mim um dia, enquanto eu tentava ganhar tempo entre uma dose e outra de junca. O bar era parte de um armazém caótico e a movimentação era constante. A claque masculina notou o sinal e aplaudiu com força, dizendo palavras cujo sentido apreendi como sendo o de “desencalhou”, ou algo assim. Fomos quebrando o gelo na medida do possível, pois vivia um verdadeiro transe com a corrente de doses de junca. Nunca me deixavam seco e não dava conta de parar. Podia ver desgosto nos olhos de Élvana quando me davam mais um copo, mas processava esse sinal como o aftertaste de uma bebida vagabunda, porém necessária.
**Capítulo 2 – Sobriedade**
Certo dia, como tudo na vida, o fogo se apagou. Ao final da bebelança vespertina, cumpri a rotina de acompanhar a turma até o Naal para as abluções noturnas, ocasião em que me fazia menos mendigo e me conectava um pouco com minha vida anterior. A noite estava clara, mas havia chovido muito de dia, de modo que as águas estavam nervosas. Quis me destacar do grupo para ter um pouco de intimidade e, após alguns salamaleques e outras formalidades, cambaleei pela margem do rio naquele trecho que ficava a jusante de uma grande barragem natural. Não conhecia bem aquela quebrada, mas me meti na água em busca do frescor e do fluxo aliviante. Mal havia iniciado o banho, pisei em falso, talvez em uma pedra, projetei-me para além da estreita margem e me vi arrastado por uma copiosa correnteza. Debati-me com a força que me era possível, mas, bêbado como estava, mais me cansava do que obtinha qualquer impulso ou flotação. Antes de chegar a um remanso, rasguei o braço em um espinheiro e bati com força a cabeça em uma pedra. Enquanto me debatia, vomitava e me engasgava com a água, os detritos e tudo o mais. Foram momentos terríveis, mas a adrenalina resultante do susto foi curando o porre e, quando consegui me aprumar, foi-me tomando de assalto a sobriedade havia muito perdida.
Não se dá valor ao que é comum. Só entendi o quanto valorizava estar sóbrio quando saí daquela guasca de semanas, o que não ocorreu sem uma longa prostração às margens do Naal, tempo que passei tentando fazer sentido de tudo o que acontecera. Quem era eu? Soubian Aloísio de Frondosa, um burocrata de alta patente num país supostamente bem resolvido. Amante das regras e das letras, agnóstico e celibatário convicto. Que fazia em tal situação vexatória? O “tranco”. Sim, o “tranco”! No começo, foram aquelas esquisitices no console, eu digitando e as palavras saindo de trás para frente. Depois, o problema com o azul. Não qualquer azul, mas aquele dos óculos anáglifos que permitem ver imagens em 3D. Coisa de doido era aquilo. Meu cérebro mapeou aquela frequência e tudo que fosse daquela cor parecia se deslocar um pouco. Não tanto que gerasse desestabilização, mas o suficiente para incomodar. Aquela vez em Nova Iorque, perto do Madison Square Garden, foi terrível. Os letreiros azuis com a palavra Fuse, enormes, deixaram-me tonto a ponto de cair no chão. Foi o azul. O susto veio certa manhã quando assistia ao nascer do sol. A cor do céu foi mudando e o tranco veio quando aquele tom de azul apareceu. Simples assim.
A noite não estava demasiado fria e fiquei por ali juntando forças para retomar a vida. Varri os pensamentos e me lembrei de tudo. A cidade, pequena e pacata, estava mapeada em minha cabeça. As gargalhadas e palavras cheias de atritos linguodentais e labiolinguais que, entretanto, conformavam uma fala musical e agradável, também me vinham com clareza à mente. E havia Élvana, única pessoa cujo o nome me ocorria. Um cão, ou algo parecido, veio descendo o barranco lindeiro, ressabiado como este que o observava. Era enorme e parecia perigoso, mas foi se aproximando e se acomodou ao meu lado tranquilamente. Depois de algum tempo, fungando e cheirando o ar sem me encarar, colocou uma das enormes patas dianteiras no meu colo, de modo que me senti à vontade para acariciar o pelo macio do bicho. Aquecemo-nos mutuamente naquela noite e fiz dele, além de amigo, um bom travesseiro, ainda que, estando ele provavelmente tão faminto como eu, acordava-me de tempo em tempo com o roncar das entranhas.
De súbito, o cão se levantou e sumiu rapidamente de vista. Vinha clareando o dia, e um animado grupo de mulheres descia cantando rumo ao rio, carregadas de cestos que, vi depois, estavam cheios de roupas. Ao me verem naquele estado, começaram a conversar em voz alta e de modo agitado. Entendia muito pouco do que diziam, pois havia em Zanfandee um dialeto feminino bastante restrito, mas sei que o nome de Élvana e as palavras ébrio e estrangeiro foram ditas várias vezes. Duas crianças correram de volta e duas senhoras mais velhas vieram em minha direção, sendo que uma delas foi colhendo umas folhas no caminho enquanto dizia algo como “Deus me ajude, Deus me ajude”.
A mais velha, que liderava claramente o grupo, alisou meu cabelo e começou a falar, com a calma quase irritante dos Zanfandes.
– O estrangeiro está em mal estado. Pode voltar à corrente de junca ou sofrer mais um pouco e se sustentar. Não tenho muito tempo. O que quer fazer?
– Quero a lucidez, pelo menos por ora. Preciso entender o que se passa!
– Tudo passa e nada passa. Você está aqui e em mal estado, estrangeiro. Disso não tenho dúvidas. Deixe-me ver seu braço.
Com um pano macio, embebido em junca, limpou a ferida e montou uma compressa à base das folhas maceradas ali mesmo em uma pedra. O cheiro da bebida me causava, ao mesmo tempo, náusea e desejo. Fiquei perturbado, mas a presença daquela figura maternal me colocou em algum lugar mental seguro e contido.
– A cabeça deve estar doendo, mas não me parece grave, disse a matriarca.
– Sim, parece ser o caso, concordei. Muito obrigado por sua gentileza.
– Sempre cuidamos. Se não for assim, não haverá vida depois. Ninguém contará nossas histórias, nem as boas nem as más, disse ela, encarando-me com os olhos semicerrados.
Consegui esboçar um sorriso tímido e vi alento naquelas palavras. Mas elas logo seguiram sua rotina e acabei ficando sozinho por mais uns instantes, até que veio Élvana descendo a trilha castigada pelos anos de pisoteio.
– Já era hora, disse ela, medindo o estrago em meu braço.
Por sorte não morreu. Outros acabaram seus dias no Naal. Muitos não fazem falta, mas alguns deixaram saudade.
Seus olhos pararam de explorar depois daquela palavra forte, brilhando de um jeito triste. Ela então se sentou ao meu lado e me perguntou:
– Como será, estrangeiro? Assim como está não pode ser. A cidade não o aceitará assim. Se desejar ficar, posso lhe conseguir trabalho e um pouso decente.
– Não sou daqui, disse. Preciso voltar. Mas não entendo bem o que houve e nem sei se adiantaria lhe explicar. Por hora, aceitarei sua hospitalidade.
– Que você não é daqui, isso é óbvio. Ou todos não o chamariam de “estrangeiro”. E você tem um saco. Pelo menos foi o que disseram lá na venda.
– Saco?
– Sim, aquele com os ovos dentro.
– Claro que tenho! Ora, mas que conversa é essa?
– Bem, na sua idade, em Zanfande, um homem já teria confiado o seu a alguma casa. Mas vamos andando. Hoje vou lhe conseguir trabalho. O resto ajeitamos com o tempo.
Caminhamos até a cidade sob olhares curiosos e maliciosos de gente de todo feitio e idade. Eles abanavam a mão e Élvana correspondia. Eu fazia o mesmo e eles se riam, levando as mãos à boca, num gesto de tentativo respeito. Mas eram divertidos por natureza. Ser sério ali era tarefa de poucos, e eu em breve os conheceria e seria mais um deles.
Chegamos à casa de Élvana e demos a volta até a porta dos fundos. Ela parou, por um instante, e me explicou que entrar pela frente seria um gesto sem volta para mim, um pedido de casamento. Mas o que mais me assustou foi a forma como isso foi dito:
– Entre e fique à vontade. Minha porta dos fundos estará sempre aberta a você. A da frente também. Mas, entre por ela e seu saco será de minha família, mesmo sendo meus frutos condenados pela rama de bulo.
Não entendi bem o que aquilo queria dizer, mas essa história de saco já estava me dando nos nervos. Ficou claro que, para evitar problemas, era melhor eu entrar pela porta dos fundos.
As horas que se seguiram foram agradáveis e nada demais aconteceu entre nós. A cama era confortável e dormi como uma pedra, emendando uns dois dias de descanso. Comi muito bem e relaxei ouvindo as risadas das muitas visitantes que por ali passaram. Uma delas, já bem velha, tomou minhas medidas e perguntou quais minhas cores favoritas. Outra, esposa de um sapateiro, veio com um tipo enorme de cabide, cheio de sapatos pendurados, que tive que experimentar, um a um, até que Élvana desse sinal de concordância.
No isolamento do banho, conferi minha anatomia e vi que tudo estava em ordem, felizmente. Ainda teria que me informar melhor sobre a questão do “saco”, mas achei prudente não o fazer ainda.
Alguns dias depois, voltaram os fornecedores, e recebi minhas mudas de roupa, sapatos e até cuecas. Eram vestes muito confortáveis e relaxadas. Não me pareceram cerimoniais ou militares. Eram do mesmo tipo que observara nos homens que andavam pela cidade. Meus trapos vindos de casa foram cuidadosamente embebidos em junca e queimados por Élvana, sob palmas e gritinhos da costureira e da esposa do sapateiro. Em seguida, a mesa foi posta e uma confortante refeição fechou o ciclo de minha dignificação em Zanfande.
**Capítulo 3 – Os tecelões**
Élvana era irmã de um conhecido tecelão, que andava às voltas com o desafio de produzir roupas em quantidade para um povo de umas montanhas distantes. Esses estrangeiros haviam aparecido um dia em peles pesadas e quentes e contado que seu mundo de gelo estava se derretendo e esquentando, não havendo meios imediatos de prover, de imediato, roupas leves para todos. Traziam pouca coisa de interesse mas, como não lhes faria falta, os Zanfandee aceitaram mandar uma partida de roupas, que foram feitas ali, meio às pressas, conforme as estimativas dos enviados.
A gratidão dos visitantes era imensa e voltaram, no ano seguinte, com carnes conservadas, artefatos feitos com ossos e até cutelaria de muito bom gosto e eficiência. Estabeleceu-se a amizade entre esses povos e, como lhes convinha, o comércio também floresceu. O único problema era que os amigos de Zanfand se reproduziam mais rapidamente e, fazendo questão das vestes confortáveis de fibra de junca, colocavam uma pressão crescente sobre os artesãos locais. Era óbvio que uma crise se avizinhava, pois a contrapartida era perfeita e os produtos trazidos em troca do vestuário se multiplicavam e melhoravam a cada volta. Mais que isso, iam criando uma espécie de dependência no povo local, que ia abandonando certas manufaturas em favor das importações. De alguma forma, teriam que aumentar a produção daquilo que interessava aos clientes estrangeiros.
Assim, não foi difícil para Élvana convencer o irmão a me aceitar como empregado. Tireu era a bonomia em pessoa e me acolheu com gosto. Fez questão de que entrássemos de mãos dadas no ateliê (fábrica aquilo não era) e logo os demais me tinham como um ungido, um superior. Isso me fez lembrar dos tempos em que um amigo fora ministro e eu pudera usar o elevador privativo, ter o café servido em minha sala a cada hora. O tipo de bobagem que, se não traz mais dinheiro, facilita a vida ou massageia o ego. Mas há nessa condição uma ressalva importante: quando a cadeira de ministro muda de dono, o café, se ainda o servirem a você, virá frio. É bom não colocar muita confiança nessas posições relativas. Há que se tecer a própria teia.
Corria à boca pequena que meu saco seria da família do chefe. Ao contrário dos meus dias em casa, ali não era mais um funcionário medíocre portando um crachá e um console portátil. Meus conhecimentos mais rasteiros sequer haviam sido cogitados naquela sociedade, de modo que pude, muito rapidamente, ter meu próprio lugar na elite local. Foi ridiculamente fácil, embora minha consciência doesse de tempos em tempos por eu ter que injetar pequenas perversões naquela sociedade. Partamos para os fatos.
Na primeira semana de trabalho, atribuíram-me a função de assistente do chefe de almoxarifado, um senhor já muito idoso e cansado, mas alegre e pouco afeito à organização. Havia chegado ao posto por ser o menos desorganizado do grupo, que tinha não mais que vinte pessoas naquela época. Passei os primeiros dias observando e vi que os costureiros perdiam um tempo lascado procurando suas ferramentas, que se perdiam no meio de retalhos de pano jogados de qualquer modo pelo chão. Do mesmo modo, custavam a combinar os cortes, pois não tinham qualquer método para armazenar os fardos de tecido que iam chegando da tecelagem. Havia variação de cor e trama de uma tiragem para outra e os viajantes de longe eram particularmente sensíveis à aparência do que compravam, mesmo sendo toscos em quase todos os outros sentidos.
Meu velho chefe não fazia questão do posto e, tendo um dia tomado minha mão antes de entrar no ateliê, informou aos demais que seria, daquele dia em diante, apenas meu conselheiro. De forma bastante tayloriana, esquematizei um sistema de organização dos insumos e sugeri um rearranjo do chão de fábrica, criando postos de limpeza, fluxos de material e organização por tonalidade, à chegada, dos fardos de tecido. A produção logo aumentou e o feitor do ateliê quis entrar de mãos dadas comigo, dizendo em voz alta que se resignaria à posição de meu conselheiro. Sem qualquer investimento material, tratei de reorganizar a empresa de modo a fazer dela uma referência naquele lugar. A demanda sazonal dos viajantes foi facilmente cumprida, havendo excedente suficiente para outro ano, mesmo após a distribuição de roupas a toda a comunidade.
Recebi visitas por muito tempo de sapateiros, marceneiros, oleiros, pedreiros e todo tipo de “eiros” que habitavam aquela região. Explicava a eles os rudimentos da administração, tentando fazer com que entendessem seus negócios como sistemas, mas não adiantava. Sem a mediação simbólica da escrita, tudo se perdia no caminho de volta à sapataria ou à vila vizinha. Não que fossem estúpidos. É que não viam virtude em esquemas, na própria noção de racionalização. Muitas vezes, desatavam a gargalhar no meio de uma explicação. Pediam licença e iam dar uma volta, como que para desoxidar as ideias.
Assim, acabei sendo chamado pelo autarca para receber a tarefa de dedicar parte do meu tempo à reforma de outros negócios. Logo vi que dois ou três dias eram o bastante para cada unidade, pois, uma vez postas em prática, as novas rotinas eram facilmente assimiladas. O conhecimento era compartilhado verbalmente. A explicitação acontecia em momentos especiais, quase religiosos, e vi que adotavam certa postura de sobriedade e uma retórica peculiar, parece-me, para facilitar a fixação de outra forma impossível naquela sociedade sem mídia. Bem, pelo menos mídia do jeito que eu conhecia.
A solenidade dos momentos de compartilhar conhecimento indicava a responsabilidade que tinham de não perder o patrimônio imaterial. Era algo bonito de se ver e isso, de certa forma, compensava a sensação montante de que vinha estragando aquela gente simples e feliz com os modelos racionalizantes do meu mundo passado. Decidi não ter pressa num projeto que vinha acalentando de começar um programa massivo de alfabetização como parte da reforma e fui ter com o Hábil-mor, a quem quis comunicar primeiro a decisão.
– Acho que não vou mais ensinar ao Zanfand as letras, disse ao mestre, que não deixara de lado, no momento de minha chegada, uma tarefa meticulosa que conduzia em seu atelier.
– Fico feliz com isso, meu amigo. Você é cada dia menos estrangeiro. Quero aproveitar e, considerando sua decisão, sugerir que deixemos de lado aquele projeto de copiar os relógios. Em primeiro lugar, duvido que consigamos fazê-lo em Zanfande. Não há máquinas e nem mãos que as façam com a devida precisão. Criar essa precisão machucaria nossa alma. Embora eu pense que esse esforço pudesse enriquecer um ou outro espírito e seu bolso, o dano pode ser maior que o ganho. Você pensa que dividir ainda mais o tempo seria tão importante?
– Não sei. Se formos produzir mais para nossos amigos das Terras Frias, isso seria necessário.
– Mas se eles são mesmo amigos, compreenderão nosso medo de conspurcar nossa alma. Outros vieram, no passado, e entenderam.
-Mesmo? Quem eram?
– Os pelados. Um povo muito diferente. Vez ou outra vemos suas luzes no céu, mas nunca mais voltaram aqui em baixo.
– Meu deus, nunca ouvi falar deles! Quero saber mais.
– Não há muito que saber. Apareceram, faz muito tempo, e ficaram pouco. Recusaram a junca e tinham uma cerca invisível em torno de seus corpos. Tentaram conversar conosco, mas as palavras não tinham sentido. Então pensamos juntos. Fui chamado a ter com eles e eram capazes de formar imagens em minha cabeça. Repetiam tudo algumas vezes, e eu ia entendendo. A primeira coisa que projetaram foi uma cena em que tanto eles como nós partíamos em sentidos opostos. As mesmas pessoas que se encontravam na reunião se levantavam e seguiam caminhos opostos. Concordei com o Autarca, que logo se havia juntado a nós, que aquilo significava um desfecho em que as partes saíam íntegras e, que, portanto, o processo que propunham não era belicoso ou excludente. Logo fomos aprendendo com eles como conversar pensando.
O Hábil-mor seguiu descrevendo a visita dos pelados e fui entendendo mais sobre essa incrível passagem. Eram, pelo que entendi, gente de outro corpo celeste, mas descendente dos Zanfande. Usavam como vestimenta uma fina película, cujas finalidades excluíam o adorno. Entendi, pela descrição, que aqueles visitantes eram resultado de décadas de endogamia ou eugenia, pois seriam muito parecidos entre si e teriam alegado fragilidades orgânicas para recusar a junca. Traziam sua própria comida, descrita pelo Hábil-mor como algo insuportavelmente insosso.
Insisti no tema da telepatia e isso fez com que eu confirmasse a hipótese de que os Zanfande, apesar da simplicidade exterior, eram um povo muito sofisticado. Não conseguirei reproduzir aqui a conversa mas depreendi da explicação que o Hábil-mor e o Autarca tiveram que ser muito rápidos no desenvolvimento de uma heurística que fosse capaz de colocá-los em condição de conversar com os pelados. Como não compartilhavam de um vocabulário comum, nem de um mesmo repertório iconográfico, tiveram que partir de imagens primárias. Por sorte, compartilhavam uma história como povos. Assim, puderam se valer de formas antropomórficas e de sensações físicas comuns. Somando-se a isso as formas geométricas e alguma matemática rudimentar, puderam ir longe em pouco tempo.
– Por que não voltaram?
– Disseram que voltariam, mas não os vimos mais. Ficaram dois ou três dias, na verdade até que acabasse aquela horrorosa comida. Vieram em um engenho pequeno. Mostraram-me o relógio que o fazia funcionar, mas não pude entender muita coisa do que explicaram. Aquilo me pareceu diabólico e borrei o pensamento para não mais me lembrar daquilo. Aquela gente era, ao mesmo tempo, muito Zanfande e nada Zanfande. Não são como você, que é quase um de nós mas muito um de nós. Se ficassem muito tempo, turvariam nossa mente e nossos modos. Eles sentiram isso quando ponderei com o Autarca sobre como conduziríamos essa amizade. Disseram que não nos importunariam por muito tempo e que precisavam somente de um favor, ainda que fosse um pedido incomum: sementes e óvulos de dez homens e mulheres Zanfande não relacionados.
– Mas como fizeram isso sem causar furor na população? Estou presumindo que aceitaram o pedido, é claro.
– Bom, eles são mestres em mentalização. Ficou estabelecido que eu e o Autarca seríamos capazes de guardar segredo. Ponderamos que seria desejável, senão imprescindível, ajudar aquele povo. Ademais, com o poder que tinham, poderiam simplesmente forçar a solução sem que sequer soubéssemos. Assim, fizeram seu serviço, sem muito alarde e em seu engenho, e logo fizeram uma projeção mental conjunta capaz de turvar a mente de todo o povo. Eu e o Autarca sentimos a projeção mas ela não teve efeito sobre nós. Eles substituíram cada memória por algum sucedâneo conhecido. A luz do engenho no céu virou relâmpago, a anestesia, um carinho de mãe que coloca o filho para dormir, a extração da semente como a lembrança de um prazer pueril qualquer. Muito engenhosos, os pelados. E nobres, sábios. Deixaram nosso povo em paz. Foram amigos de verdade, como lhe dizia no começo da conversa. Enfim, se os da terra fria forem, de fato, amigos, entenderão nosso problema.
Capítulo 4 – A viagem
Os da terra fria eram mesmo amigos e, na visita seguinte, foram convencidos de que não poderíamos aumentar nossa produção para atender a demanda deles. Tentei engendrar uma conversa sobre crescimento exponencial, as ideias de Malthus e coisas do gênero, mas o chefe Rand reagiu com um esgar capaz de liquidar o assunto. Seus homens riram muito quando falei de controle de natalidade e pensei que, como no caso de certos povos de minha Terra, não conseguiam dissociar, em sua visão de mundo, sexo de reprodução. Analisamos rapidamente a situação e concluímos que a saída seria eu ir com eles até a terra fria para iniciar ou melhorar o que lá houvesse em termos de indústria de vestimentas. Aproveitaria para ver se algum conhecimento deles pudesse ser trazido de volta a Zanfande.
Élvana estivera muito triste nos dias que antecederam a viagem. Andava muito calada e, quando falava, era econômica nas palavras. A comida era protocolar e o cantarolar sempre evocava melancolia. Lembrei-me de minha mãe, que sempre se entristecia quando meu pai viajava. A situação era incômoda, pois o velho, por sua vez, ficava bastante excitado e assobiava alto pela casa, andando de um lado para outro e organizando sua tralha. De minha parte, tentava ser comedido na expressão de meu entusiasmo com a viagem e mais carinhoso que o normal com Élvana. Naqueles dias, por várias vezes, eu a vi indo até a porta da frente, com respiração nervosa e as mãos crispadas. Meditei sobre a situação, mas, naquele momento, nada poderia ser feito. Ademais, éramos, até então, apenas muito amigos.
Na madrugada fria, despedimo-nos entre goles apressados de bulo e ouvi dela uma só palavra: “volte!”. Respondi com um sorriso terno e um abraço para me juntar logo à tropa que se prostrava à porta de trás da casa. Partimos sem fazer muito barulho, os da terra fria com seu jeito um tanto marcial de caminhar e eu, apesar de animado com a perspectiva de conhecer um mundo novo, morrendo de preguiça de enfrentar o caminho.
Não vou me deter no grosso da marcha porque seria, para o leitor, como assistir a um vídeo amador de pescaria. Não saberia descrever quase nada do que via e o cenário se repetia, alternando-se ritmadamente entre mato, rio, morro, morro, rio, mato. Comíamos peixe cru com um molho fermentado escuro, castanhas e certas folhas que regulavam a digestão. De noite, quando havia caça, a comida era cozida e assada em fogo de chão. Alguma aguardente aparecia do nada, mas eu a recusava pensando nos dias complicados em que eu ainda me enfiava na junca.
Certas noites, algumas luzes estranhas foram avistadas no céu e Rand procurou despreocupar os homens que, entretanto, pareciam pouco confortáveis com a situação. De minha parte, não via graça naquilo. Como no caso da barata voadora, o que vem de cima sempre está em vantagem. Além disso, a assimetria tecnológica seria, muito provavelmente, favorável ao outro, pois os da terra fria dispunham de cutelaria primitiva e uma pequena variedade de arcos e flechas. Já quem vem do espaço, sabe-se lá o que teria.
Dormi pouco e mal nas noites seguintes, apavorado com as luzes no céu. Tentei estimar a altitude dos objetos, mas era impossível, posto que não conhecia sua forma nem escala. O silêncio com que se moviam era aterrador e os deslocamentos não permitiam a detecção de qualquer padrão que pudesse indicar esta ou aquela intenção. Havia visto, no passado, muitas coisas estranhas no céu, mas estava em uma cidade, e podia entrar em casa e esquecer tudo rapidamente. Numa cidade, os alvos são muitos. Nunca levei, que me lembre, preocupação sobre isso de um dia para o outro.
Assim se passaram algumas semanas. Rios, morros, morros, rios, matas. Os homens ficavam a cada dia mais incomodados com as luzes e, numa manhã seguinte de noite mal dormida, um deles pediu a palavra publicamente a Rand.
– Não posso mais, chefe. Na noite passada sonhei com o dia em que Flastr voltou sozinho, contando o que aconteceu com seus homens. Não consigo pensar em outra coisa. Essas luzes! Que vamos fazer?
– Nada!, disse Rand. Que poderíamos fazer? Gritar com eles? Atirar flechas? Eles provavelmente nos devolveriam raios sem chuva, trovões que fazem a terra tremer, ovos rachar! Sigamos, pois. É a única coisa que se pode fazer!
– Mas e se nos pegam?
Deixe de ser mole. Se nos pegam, nos pegam! Desde quando tivemos qualquer chance frente aos poderes divinos? Esses visitantes são pouco menos que deuses para nós se nada podemos fazer para evitar os efeitos de sua cólera, de seus desejos. Se você tem fé, reze. Se não, deixe estar!
Naquela noite, Rand pediu que eu o acompanhasse. Acordou três de seus homens mais fortes e fomos silenciosamente rumo a uma campina próxima. Três fogueiras foram acesas, de modo muito controlado e com a ajuda de pedras, formando um triângulo. Segundo Rand, um ser inteligente veria, mesmo de longe, que não se trataria, muito provavelmente, de algo casual. Esse líder era de uma sagacidade incrível. Pouco afeito aos mistérios da fé, preferia raciocinar logicamente, tentando ser, sempre que possível, muito pragmático diante dos desafios que lhe surgiam.
Em roda, em torno de uma das fogueiras, contaram-se histórias de arrepiar. Histórias de pescador, pareceram-me, mas muito boas. Via-se que algumas não tinham nem pé nem cabeça mas haviam sido elaboradas e refinadas em muitas noites como aquela, com tempo e adrenalina de sobra.
Passadas algumas horas, duas luzes estranhas acabaram com a monotonia dos céus. Piscavam estroboscopicamente e se deslocavam, de início, paralelamente. Impossível dizer a altitude. Era algo bonito de se ver e agradeci por ter uma vista ainda boa, pois não havia óculos em Zanfande e, embora eu tivesse explicado ao hábil-mor os princípios que dominava de ótica, produziam vidro ainda muito impuro e isso eu não sabia como resolver.
– Lá vem!, gritou Rand, levantando desajeitadamente. Comecem a rotina!
Os homens de Rand correram até uns montes de gravetos que haviam juntado e começaram a atiçar as fogueiras. Primeiro, uma. Acalmado o fogo, duas. Depois atiçaram as três e assim foram repetindo, até que as luzes começaram um processo de aproximação.
Eram duas belas naves, do tamanho de um ônibus, cilíndricas e de um brilho suave e perolado. Não tocavam o chão, mas, no entanto, eram estáveis como se o fizessem. Num átimo, abriram-se enormes portas e pude ver que a iluminação interna era igualmente suave, havendo uns flashes cuja origem não pude identificar naquele momento. Fui invadido por uma sensação de cuidado maternal e logo por outra de alerta. Era como se a mãe dissesse que se eu teimasse, haveria punição. Depois do fechamento com uma ideia de desespero, de pedido de socorro, reiniciava-se – tudo muito rapidamente – a rotina telepática. Os pelados, é claro! Lembrei-me da conversa com o hábil-mor e comecei a mentalizar cenas de minha infância, de crianças Zandfand e de filhotes de animais com suas mães, mamando e em clima convivial. Avisei a Rand e aos homens que confiassem em mim e pensassem no mesmo tipo de coisa.
Passados poucos minutos, desceram quatro pelados, sendo dois deles aparentemente masculinos, uma mais feminina em seus trejeitos e outra um tanto ambígua. Vieram confiantemente, como alguém que desce de um jato e caminha para o saguão do aeroporto numa viagem de negócios. Eles tinham pressa, isso era patente. A criatura ambígua tomou a frente e veio até mim, estendendo o braço e espalmando a mão esquerda. Fiz o mesmo e ela logo tomou minha mão, acariciando-a calmamente. Uma sensação agradável tomou conta de minha alma e entendi o momento como algo bom, natural. Não havia qualquer sensação de contato alienígena. Eram, decerto, alguma derivação, como haviam contado em Zanfande. Ensaiei pensar em sugerir mentalmente a ela que cumprimentasse Rand mas, antes mesmo de eu tentar codificar a mensagem, as mãos já se uniam, engendrando sorrisos em toda a tropa.
A conversa inicial foi protocolar:
Como das outras vezes, começavam apresentando os símbolos e depois partiam para manipulação.
Sol, dia claro, noite, escuridão, cada imagem passada em staccato
– pausa
Uma campina com sol nascente se ilumina, o sol corta os céus e se esconde, dando lugar à escuridão e depois a uma nova alvorada – pausa
A mesma cena acelerada roda duas vezes, a terceira terminando na noite – pausa
– Ficam dois dias e duas noites e se vão na terceira noite, disse Rand.
Isso.
– A ração é pouca para tantos, disse Rand.
– Eles trazem a própria comida, lembrei.
Na sequência, comunicaram interesse em discutir três assuntos, dois deles em grupo e um somente comigo. Eles nos deixariam metade do dia para as rotinas do rancho e outra deveria ser reservada para as reuniões. O primeiro dia seria para indução dos códigos para a comunicação, a ser feita no curso de uma longa conversa informal, e os outros dois para tratarmos de assuntos entendidos como mais sérios.
– Cansaço, longa distância, tensão, dúvida, encontro, relaxamento – pausa
Cansaço, loga distância, tensão, dúvida, relaxamento…
– Sono?
– Sono!
– Bom descanso, então, disse a eles, estendendo a mão espalmada
Na manhã seguinte, dirigi-me à andrógina líder dos pelados e iniciei uma sequência de pensamentos sobre os quais havia elaborado na noite mal dormida. Mal havia começado, a criatura lançou uma sobreposição das mesmas ideias, dando a entender que havia captado tudo durante a noite. Sorri, pensando sobre o tolo que havia feito de mim mesmo, e vi que a criatura sorria também, de olhos fechados e crispando as mãos. Tentei interpretar aquilo, mas os sinais não batiam com minhas referências. Notei, pela primeira vez, pois a pele artificial confundia um pouco a vista e eu os havia visto apenas de noite, suaves contornos femininos. Minha cabeça mal processara aquilo e logo sobrevieram imagens da criatura nua, colocando de lado qualquer dúvida que eu tivesse sobre seu sexo. Em seguida, formaram-se as imagens de um indivíduo masculino e de quatro crianças, os quais se deslocaram em fade, indo o homem para um lado e as crianças para outro. O homem reaparecia junto a outras mulheres e surgiam outros tantos pequenos, sempre desaparecendo em fade. Finalmente, as proles todas ressurgiram como num infográfico matricial, e vi que o mesmo homem gerara, com quatro mulheres, 23 filhos. A representação de algumas delas tremia e um ou outro órgão aflorava, iluminava-se em vermelho e definhava, após o que desaparecia a criança do gráfico. Foram-se 20 deles e o homem também, após ter iluminado de vermelho seu coração. A visitante baixou sua cabeça e fui tomado por uma angústia inominável.
Ela confirmava a história contada pelo hábil-mor. Muita endogamia. Poucos colonizadores, obrigados a cruzar com quem estivesse à disposição. Foram reforçando, a cada geração, as debilidades congênitas, além de sofrerem as agruras do planeta em que viviam, não tão farto com Zanfande. Estavam condenados à tristeza de, mesmo sobrevivendo, ter que ver os seus morrendo aos montes.
Perguntei porque haviam migrado. Não fazia sentido endurar tanta dificuldade por nada. E por que não voltavam de vez? Zanfande era grande o suficiente, pelo que via. A resposta veio de imediato e me pareceu convincente, em uma conversa mental já acelerada.
– No passado, faz mais de 500 anos, conhecemos gente do espaço em uma incursão por novas áreas para morar. Essa gente nos apresentou a telepatia e, mesmo antes de voltarmos a nossas casas, a interação já produzira mudanças e habilidades que inviabilizaram nosso convívio com os que haviam ficado na aldeia. Houve uma potencialização absurda de nossas capacidades. Nada mais era como antes. Olhar para os minerais era ver ligas resistentes ao espaço. As vestes de nossos parentes nos pareciam andrajos. Seus costumes eram insuportáveis. A comida, intragável. Da noite para o dia, não havia mais um só povo. Éramos nós e eles.
– Mas, como conviveram?
– Não convivemos por muito tempo. Começamos a evangelizar os demais, tentando implantar a telepatia e sugerir novos modos. Pensávamos que nos agradeceriam pela libertação daquele atraso, mas o que ocorreu foi uma reação brutal, em que quase todos os que haviam sido influenciados pelos espaciais foram mortos.
– Acho difícil imaginar os Zanfande sendo tão brutos.
– Não é típico deles, mas nos entenderam como uma ameaça definitiva e não pouparam esforços para a eliminação. Só não fomos dizimados porque uma das naves visitantes ainda andava por aqui e pôde captar nosso desespero. Não foi difícil para eles causar um leve terremoto, que estonteou a maioria e nos deu a chance de fugir até um local em que pudessem nos resgatar. Foram cerca de cem anos de isolamento, em um local bastante generoso, até que conseguíssemos estabelecer as condições para a construção das naves que nos levaram – a totalidade de nosso povo – daqui.
– Mas, e os visitantes? O que queriam?
– Queriam comerciar. E nos deram tudo que seria necessário para iniciar a produção dos bens que viriam buscar com frequência, quando tudo estivesse funcionando do modo esperado. Mas no meio do caminho, mudamos de ideia. Havia em nós muito de Zanfande, que é um povo lento e sem grandes ambições que não a fruição da vida. Logo vimos, pelo menos alguns de nós, que nossa vocação era outra e que não seria possível um acordo global com os visitantes. Houve um racha significativo e, apesar de um certo atraso não muito bem visto pelos investidores, substituímos parte de nossa força, física e mental, por simulações de gente.
– Impressionante…
– Nada demais, na verdade. Quando dominamos a telepatia, encontramos um modo de pensamento em rede que simplificou muito as coisas, eliminando etapas de simbolização e representação. Persuadir nesse modo é desnecessário, pois definimos uma zona de interesse comum e nesse espaço-tempo colocamos de parte o ego e outros empecilhos. Essa rede mental é capaz de telecinese e teleportação. O que construímos mentalmente pode ser, com certa facilidade, recriado no mundo físico, embora tenhamos optado por um uso muito discriminado dessas capacidades.
– Tenho curiosidade de saber mais sobre essas simulações.
– São engenhos de todo tipo, alguns físicos e outros existentes numa dimensão não-física, que interagem com nossas redes mentais. Estabelecemos um campo, em geral distante de onde estamos fisicamente, pois interagir com essa complexidade gera demasiado esforço cognitivo, e as simulações partem para a realização de suas tarefas, que são extensões das nossas. Há um contorno ético-ecológico que delimita a ação dessas simulações. Até atingirem essa fronteira, não intervimos no escopo do trabalho das simulações. Na verdade, não temos controle estrito sobre as saídas desses sistemas, pois estamos aquém de sua capacidade criativa. Nossa única preocupação é com os riscos advindos do desconhecido, motivo pelo qual gastamos mais tempo com os contornos que com os conteúdos. As simulações, por extensão dos criadores, não nos desapontam como criaturas. Enfim, alguns poucos quiseram ficar e seguir, com a ajuda das simulações, o plano de comerciar com os visitantes. A maioria de nós resolveu ir embora, pois havia um sentimento de que não pertencíamos aqui.
– E vocês têm nomes? Eu me chamo Soubian.
– Sim. O meu é Alva. E obrigado por me achar desejável, mesmo quando explico algo como as simulações.
– Senti o sangue corando meu rosto mas àquela altura de minha vida, tendo passado por tanta estranheza, não me importava com muita coisa que não fosse seguir vivendo minha vidinha. Ela era mesmo desejável e eu já ia tentando bloquear ideias mais avançadas nesse sentido quando veio a conversa decisiva.
– Soubian, precisamos da ajuda de vocês. É algo que poderíamos conseguir à força e vocês nem perceberiam, mas nossa ética não permite que assim o façamos. Estamos morrendo. Nosso pool genético é insuficiente e a endogamia nos enfraquece fisicamente. Precisamos de seus gametas. Você é mais sofisticado que os demais, pode entender isso. Nossos cientistas acham que falta pouco para chegarmos a um ponto de inflexão, mas está difícil. Faz quase um século que visitamos este planeta na tentativa de convencer os habitantes a colaborar conosco, mas poucas vezes obtivemos sucesso. Nossa proposta é sempre vista como algo ofensivo. E como apagamos as visitas das mentes, nunca fica a possibilidade de reflexão e mudança de ideia.
– Compreendo. Em Zanfande há uma pessoa que se lembra de vocês. Como sou diferente, provavelmente um visitante como vocês – não estou bem certo se do tempo ou do espaço – ele me contou sobre uma certa visita e nelas vocês foram bem-sucedidos.
– Sim, não faz muito tempo. Eu mesma coordenei essa missão.
– E como podemos resolver a questão? O que eu poderia fazer para ajudar?
– É preciso convencer seus amigos das Terras Frias a colaborar. Zanfande já está em nossos genes. Tudo que preciso é do consentimento deles. O resto é meramente processual e as simulações se encarregarão das tarefas. Se você desejar ter sua semente espalhada, ficaria honrada em carregá-la eu mesma.
– Fico lisonjeado. Você tem meu consentimento. E falarei com Rand sobre a questão
– Pelo que Alva agradece.
**Capítulo 5 – Atalho**
Tudo foi resolvido rapidamente. Durante o dia, as conversas foram intensas e sutis inoculações simbólicas abriram espaço para aceitação da ideia pelos homens que, telepaticamente, via canais abertos pelas simulações, conversaram com suas mulheres distantes. Acordos foram – ou não – feitos e, ao cair da tarde, o congresso improvisado e remoto havia chegado a um número significativo de aprovações. Alva estava exultante, e pude sentir nela uma alegria que não havia quando de sua chegada.
À noite, houve um lauto banquete. As simulações entenderam os desejos do grupo e providenciaram tudo no mais impressionante silêncio. Pedi a Alva que me autorizasse a vê-los e ela concordou, desde que eu guardasse segredo do que visse. Se aquilo me perturbasse de algum modo, a memória poderia ser apagada sem maiores problemas, de modo que me coloquei a postos quando os homens foram dormir. O combinado é que eu participaria do processo, porém num nível de consciência a que os demais não chegariam.
Quando o silêncio se instalou, um suave cheiro de flor veio perfumar a noite, espalhando-se com a ajuda da brisa que as simulações produziam com motores invisíveis. A mente se impregnava de um sentimento maternal, de acolhimento e conforto. Distantes do acampamento, as mulheres concordantes viviam semelhante idílio, protegidas por não se sabia – e nem importava – o que. O desejo de dormir era insuportável, mas meu cérebro estava engatilhado para endurar essa vontade e ver o que viria depois.
Dormiram todos. A mentes ficaram silenciosas por um tempo. Pude sentir umas doze delas em suas nada sutis diferenciações. Mesmo no silêncio, a pessoa é um poço de vibrações latentes que entregam, em detalhe, a índole, o desejo, os tectonismos psíquicos latentes. Analisei alguns deles nesse privilegiado momento e vi que eram gente valorosa, não casualmente os escolhidos de Rand para a viagem.
A simulações interromperam minha pesquisa com um pedido protocolar de licença, um basta educado, porém não negociável. Minha mente foi também silenciada por alguns segundos, após o que começaram a emergir memórias de momentos eróticos vividos e não vividos, filmetes em que, deduzi, as simulações articulavam indiscriminadamente pessoas que eu conhecera pessoalmente e outras que provinham do cinema e da mais pura invenção. Os corpos, muito rapidamente, começaram a reagir a esses pensamentos. No meu caso, sentia a pulsação física da emoção. Os outros também reagiam, balbuciando palavras incompreensíves, inquietando-se em seu sono controlado.
As simulações controlaram a temperatura e fizeram levitar cada um dos homens, levando-os, organizadamente, para uma clareira aberta ao lado. Campos de força delimitavam espaços em que os homens passavam pelo processo de estimulação, ejaculação e higienização. Flutuando, copulavam com suas mulheres imaginárias e gozavam copiosamente. O material colhido era encapsulado por uma película azul e transportado por vias invisíveis até a nave dos Alva. Passados poucos minutos, todos estavam em suas cabanas, roncando pesadamente.
Passei algum tempo processando aquelas imagens e pensando no absurdo daquilo tudo. Quando começava a me acostumar com a ideia, Alva apareceu dizendo que haviam conseguido suficiente material e que deixaria a meu critério contribuir ou não para o pool genético deles. Expliquei que não tinha certeza sobre minha relação com Zanfande, contando por alto a história de minha chegada.
Estimo que as simulações analisariam qualquer material antes de usar, certo?
É assim que funciona. É tudo automático e acontece na hora. As amostras são guardadas juntamente com uma representação gráfica do material, os padrões mentais do doador e informação fenotípica. Pretendemos voltar a valorizar a relação sexual em nossa sociedade. Nossos cientistas entendem que a endogamia nos tornou visualmente desinteressantes. Para viabilizar o desejo, tentaremos fomentar a variação de nossas cascas e o retorno, pelo menos em certas ocasiões, ao uso de fantasias que estimulem o apreço pela diferenciação visual e não somente por padrões mentais.
Vocês não temem retrocessos culturais, atavismos? De onde venho temos problemas com o que chamamos de carnaval, ou festa da carne. As pessoas se entregam a fantasias consentidas durante certos curtos períodos e depois têm dificuldade de voltar ao real. Muitas vezes prolongam o carnaval indefinidamente, tentando impor os papéis vividos na festa aos padrões de relacionamento da vida cotidiana.
Não tememos isso, embora tenhamos cogitado dessa possibilidade. É um risco que pretendemos correr em nome da continuidade de nossa espécie.
Imagino. Então, como fazemos?
Você é quem sabe. Existe uma mulher em sua mente, numa casa pequena e simples. Ela é significante de muitos significados pra você. Conforto, cuidado, ternura. Podemos usar essa imagem para emulação do coito ou podemos guardar em mim sua impressão genética. Sei que não sou atraente, mas podemos arranjar as condições para que isso não seja um problema. Ademais, posso convocar a mente de sua mulher e suprimir a minha, de modo que meu corpo seja apenas o veículo de um transação física. E tudo será esquecido, de qualquer modo.
A escolha me cansa, Alva. Ou, talvez, eu seja mesmo um covarde. Mas quero a oportunidade de estar mais proximamente com você. Élvana é, por hora, uma amiga. Estou certo que será mais do que isso em breve, mas não vou adiantar uma condição ainda incerta. A propósito, acho você muito interessante e desejável…
Acho que teremos que retomar, em nossa civilização, o interesse pelo corpo. Um dia, vivemos uma condição em que o sexo foi separado da reprodução, o que significou liberdade. Depois, foi alçado à condição de jogo e se converteu em vetor de competição e discórdia. Somos uma cultura orientada à estabilidade, mesmo quando ela nos destrói. Buscando retomar a paz, mas sem volta à barbárie, suprimimos em nosso discurso a sexualidade. Ela foi recalcada, dobrada e redobrada. Arquivada. Mas é como um elefante em uma loja de cristais. A obediência é normativa e o que é latente pode ser sentido o tempo todo. Basta um sinal e teremos uma orgia de meses. Mas por hora, cuidemos de nossa missão.
No dia seguinte, as simulações trabalharam sem cessar. Podíamos ver, a distância, movimentações de rochas, sua fundição e a sublimação de elementos indesejáveis. Do nada, foram surgindo quatro naves como a dos pelados e uma sonda precursora, todas flutuando elegantemente a poucos palmos do chão.
Reunimo-nos, todos, no centro da clareira para um despedida calorosa. Algumas amizades e, em alguns casos, bem mais que isso, haviam se formado, apesar do pouco tempo de interação. Claro. Não havia medo nem competição. Tudo que restava era a fruição e o intercâmbio curioso entre os diferentes.
Estava tudo combinado. A comunicação, doravante, seria feita por dispositivos existentes nas naves e, com elas, poderia, em boa hora, a bem de conhecer meus herdeiros, visitar os pelados em sua terra. No momento, deveríamos seguir nossa missão nas Terras Frias, agora muito próximas, uma vez que dispúnhamos das naves presenteadas pelos pelados. Mais que isso, havia recebido de Alva o domínio da simulação, com a qual poderia, ainda que não pretendesse fazê-lo, revolucionar o mundo. Entretanto, eu seria o único a me lembrar desses dias e de suas surpresas. A esquadrilha deixaria nosso grupo a um dia de caminhada do destino e a memória dos demais seria apagada e substituída por uma viagem cheia de aventuras, ao cabo da qual eu me perderia, reaparecendo, para a surpresa de todos, poucos dias depois.
**Capítulo 6 – Exploração**
No período de meu sumiço, fiz várias órbitas de reconhecimento, e logo vi que estava mesmo na Terra, provavelmente no período de deriva continental que sucedeu Pangeia. Não me espantei. Francamente, depois de tudo que ocorrera, essa informação era mais um dado a registrar, sem grande impacto sobre meus planos. Explorei, sem tempo para aterrissagens, todo o sistema solar, detendo-me, por mais tempo, em Europa, onde vivam os pelados. Um satélite tão complexo que era chamado por eles de planeta. O espanto permanente dessa viagem ainda me mobiliza!
A nave era uma teteia. A conexão com meu pensamento era perfeita. Bastava eu imaginar um procedimento e ele se apresentava, melhorado, como proposta. Bastava eu confirma-lo e tudo acontecia conforme previsto, salvo em casos inviáveis ou entendidos como extremamente arriscados. Visitei desertos, ilhas e as mais lindas cachoeiras. Sobrevoei, tranquila e secretamente, povoados e cidades de diversos tipos e níveis civilizatórios, escolhendo alguns para visitar na condição de pretenso comerciante de bens que as simulações não hesitavam em produzir, quase que do nada, com esmero e rapidez.
Desfrutei da companhia de homens e mulheres interessantíssimos, deleitando-me com seus modos, culturas, roupas e perfumes. Esquivei-me, com igual deleite – e graças ao dom telepático que me havia sido legado por Alva- de armadilhas preparadas pelos menos bem intencionados, sempre presentes em qualquer agrupamento humano. Tentaram me embriagar e envenenar, valendo-se de belas mulheres, que neutralizava com sequências básicas de programação mental. Num caso extremo, um oficial de um dos países visitados notou minhas habilidades, e já chamava um telepata local para o combate quando consubstanciei uma simulação fisicamente potente e saí, nela envolto, moendo paredes e tudo que aparecia pela frente. Confesso que fui pouco elegante naquela ocasião, mas tinha que me encontrar com o povo da Terra Fria.
Enquanto aproveitava aquele ínterim, simulações construíam e posicionavam uma rede de pequenos satélites de comunicação, com base na qual garantiria contato entre as diversas naves da pequena frota que comandava e os postos remotos que havia criado para desenvolver uma futura rota entre Zanfande e as Terras Frias. Todos os dispositivos eram inconspícuos, absolutamente silenciosos e disfarçados dentre elementos naturais do terreno. O risco de um deles ser tomado por lenha ou tijolo era nulo, pois tinham torno de si um campo energético capaz de nausear quem ou o que se aproximasse. Esses aparelhos eram perfeitos. Simplesmente, não falhavam, e cumpriam espetacularmente qualquer função que se lhes atribuísse.
Por dias, que se estenderam conforme fui monitorando um certo atraso na etapa terrestre dos amigos, mapeei o planeta, seus recursos e limites de exploração. Tudo ia sendo computado conforme os questionamentos por mim colocados à nave e sua inteligência artificial. A madeira e os minérios eram fartos, assim como fibras vegetais e componentes necessários para tecidos baseados em polímeros. A pesca seria farta. A nave calculava sistemicamente o balanceamento topográfico, e redesenhava, conforme algoritmos captados na natureza, as bacias e rios, de modo a levar peixe em abundância onde não havia. A agricultura não seria problema também, mas a nave cogitou a possibilidade de um desando demográfico resultante da abastança, e toda uma rede de simulações se organizou, adhoc, para desmontar a parte da manipulação que lhes surgia nas contas como exagerada. Era muito poder, mas vi nesses casos o funcionamento dos contornos determinados pelos pelados.
Meu papel no novo planejamento da missão, com o passar dos dias, foi se tornando mais diplomático do que técnico, e um certo tédio foi tomando conta de minha alma. Percebendo isso, a nave se deslocava de modo a me levar a lugares bonitos e inspiradores, na tentativa de aplacar meus sentimentos negativos. Percebendo a incapacidade de fazê-lo, passou a cicatrizar algumas modificações e minimizar as alterações imediatas, deixando espaço para a intervenções humanas que, entendia ela, dariam-me ocupação e sentido à jornada. A fabricação foi sendo substituída por projeções de possibilidades, e, com a proximidade do encontro com os amigos, os mundos que haviam sido criados como que do nada foram se desmanchando, com a permanente impressão mental de que, a qualquer momento e conforme meu desejo, poderiam, em maior ou menor complexidade, se totalmente recriados.
Um certo vazio tomou conta de mim, mas tive certeza de que não seria necessário tamanho grau de interferência naquele momento. Melhor seria seguir exercitando o músculo da aventura e da dificuldade calculada. Assim, pousei a nave perto de onde se encontravam os amigos, e, após rápidos procedimentos de camuflagem e acertos mentais com a nave, parti, acompanhado pela pequena sonda, também disfarçada e inconspícua. Ela era meu nexo com todo o sistema criado, com suas naves, satélites e redes de simulação.
**Capítulo 7 – Reencontros**
Do alto de uma escarpa, gritei por algum tempo, na tentativa de chamar a atenção dos amigos. Pelos cálculos da nave, estariam a uns 200 metros de minha localização. Não me escutavam, talvez pela direção do vento ou porque estivessem em um local com muita absorção de som. Enviei a sonda em rápida missão, e ela se encarregou de criar os estímulos necessários ao deslocamento do grupo em minha direção. Foi um enorme prazer reencontrar aquela gente. Estavam animadíssimos e muito interessados em montar logo um acampamento para que pudéssemos compartilhar as histórias que, disso não faziam a menor ideia, haviam sido implantadas em suas mentes. A preocupação com o fato de eu ter me perdido logo se dissipou, embora eles demonstrassem certo espanto quanto a minha capacidade de sobreviver sozinho, posto que me conheciam como um tipo, ainda que criativo, muito fraco para os desafios de uma viagem em terras desconhecidas. Contei a eles uma história a mais simples possível, tentando não me enrolar. Quando me fustigavam por detalhes, dizia que a história deles seria certamente melhor, e que queria ouvi-la logo. E assim passamos uns dois dias, conversando sobre um passado que não havia existido e planejando um futuro que poderia ser manipulado com um simples pensamento meu, ainda que eu não pretendesse assim fazê-lo.
Um dia de caminhada nos levara até Mantna, a vila principal daquele povo. Certamente, o nome Terras Frias fora cunhado pelos Zanfande, porque, para nossos amigos, aquela era a Terra Mãe. Ademais, havíamos lá chegado na primavera, e a temperatura estava agradabilíssima. Uns 20 graus, estimei toscamente. Havia flores por toda parte, domadas e cultivadas com esmero por mulheres e crianças. Era um povo realmente diferente dos Zanfande. Vivam em terras altas. Uma vida diferente, com desafios diferentes, fazia um povo obviamente diferente. Mas, para eles, aquela era a normalidade, e a vida seguia quase que incolumemente, apesar da chegada do grupo liderado por Rand, que continha um estrangeiro visivelmente diferente.
De longe, observei Rand ao reencontrar a família. Os pequenos grudavam em suas pernas, enquanto ele abraçava, com força carinhosa, os adolescentes. Os mais velhos e a esposa esperavam com um sorriso no rosto. O pai os abraçava com os olhos, enquanto a festa com os menores não terminava. Era uma alegria reconfortante, que eu nunca tivera. Pensei imediatamente em Élvana, mas me lembrei da condenação pelo bulo. Pensamentos pragmáticos me assolaram por instantes. Seria possível adotar? E seu tivesse filhos com outra mulher, quem sabe, deste povo também tão agradável?
Um grito distante interrompeu, de repente, os reencontros e abstrações. Rand girou a cabeça na direção daquele som lancinante, e eu o acompanhei, tentando localizar o problema. Por um átimo, pensamentos de desgraça me assolaram. Mas, rapidamente, a tensão se desmanchou. Era o louco da vila, feliz por reencontrar os amigos. Ele corria pelas vielas, como que tentando avisar a todos que os heróis viajantes haviam voltado. Seus olhos vítreos estavam arregalados, e as veias do pescoço saltavam como cordas tensas de um contrabaixo. Por onde ele passava gritando, as pessoas se riam. Não dele, mas de alegria, porque uma viagem como aquela feita por Rand e seus homens poderia sempre ter terminado em desgraça.
Enquanto andava pela vila, fui observando o modo como se organizavam, os materiais disponíveis e o grau de desenvolvimento técnico dos artesãos. Acompanhado pela invisível sonda, visitei as redondezas e computei a relação entre as demandas da população e o que a natureza poderia oferecer. Ficou claro que haveria um equilíbrio, temporário, pelo menos, que viabilizaria minhas intervenções sem necessidade da interferência das simulações no ambiente. Ocorreu-me, contudo, deixar programada uma sonda naquela localidade, que se encarregasse de monitorar o regime de compensações, de modo que eu pudesse, a qualquer momento, criar uma onda de simulações que, com os devidos cuidados, pudesse interferir positivamente nos arranjos naturais. A preparação de ativos estava em ordem, e eu poderia avançar com meu trabalho.
Foram vários meses de intenso trabalho, sempre enfrentando a dificuldade de se organizar os processos sem a ajuda da escrita. Acabei criando, com os artesãos mais criativos, uns painéis enormes de pedra, nos quais entalhávamos os esquemas, sempre com o máximo possível de pessoas presentes. Por dias seguidos, íamos até os painéis, e as pessoas iam se revezando na tarefa de reinterpretar e rememorar o conhecimento tácito por trás dos símbolos. Conforme os fomos colocando em prática, contudo, a memorização ocorreu muito facilmente para um grupo maior de pessoas. Os materiais eram trazidos pelos fornecedores, triados, organizados, preparados e processados a cada dia com maior esmero e precisão, diminuindo-se o desperdício e as inconformidades.
Dia após dia, os fardos de roupas e utensílios saíam das pequenas fábricas, motivo de orgulho para mim e para os das Terras Altas. Rand não conseguia esconder sua satisfação, pois seu prestígio crescia também, à medida em que nossa empreitada se mostrava sempre mais bem-sucedida.
Um fato curioso se faz digno de nota. Em visita a um importante membro do conselho da cidade, ofereceram-me um pouco de vinho, que achei prudente aceitar. Quando o filho mais velho do ancião entrou na sala com aquele luxo de bebida, fiquei surpreendido ao ver que tanto a garrafa como o copo eram de vidro delicadamente soprado!
– Conselheiro, muito obrigado pelo convite. Estou encantado com sua cidade e com sua gente. Todos são muito habilidosos. E esses recipientes de vinho, de onde vem?
– São feitos em uma vila próxima, filho, por artesãos que alimentam uma antiga tradição. Podemos visita-los, se quiser. Apreciamos muito o diáfano. É um presente luxuoso que damos aos filhos quando se casam. Os materiais para sua fabricação vêm de longe, como você pode imaginar. Não são algo presente em nossa região.
– Como conseguem a areia e os metais necessários?
– São viajantes que nos trazem. Um povo dos braços compridos. Não se comunicam por voz. Em uma viagem feita há muitas gerações, nós os encontramos em uma região desertificada. São uns tipos muito mansos, que se interessaram por nossa comida muito rapidamente. Fizemos fogueiras naquele lugar, e um dos nossos notou a transformação ocorrida com a areia. Ficou tão encantado com aquilo que decidiu levar consigo o quanto conseguisse carregar daquele material para experimentar com o processo em seu forno de cerâmica. Os do braço comprido notaram o esforço e começaram a juntar areia em uns enormes odres. Agradecido, nosso artesão retribuiu a ajuda com sobras de carne e frutas secas, com os quais nossos amigos silenciosos fizeram uma festa. Para nossa surpresa, dois deles apareceram em nossa vila poucos dias depois de nossa chegada, com alguns odres de areia. Devem ter nos rastreado!
– Que caso interessante. Quantos dias de viagem, conselheiro?
-Meses. Dois meses! E o interessante é que, uma vez retribuído o presente, os carregamentos passaram a ser constantes, a ponto de chegarmos a uma saturação. Tivemos que gesticular muito para que entendessem que não havia como retribuir tanta areia. Enfim, chegamos a um equilíbrio, e os carregamentos têm sido suficientes para nossa produção de diáfanos.
– Gostaria de visitar essa vila, conselheiro.
– Claro, vamos arranjar isso.
Passamos então a tratar dos temas administrativos, e de como ampliar o uso do conceito de escola interativa e prática. Conversamos longamente, e decidimos que seria importante encontrar formas de não gerar uma interferência excessivamente ostensiva na vila. Talvez, devêssemos criar estruturas nos arredores, sempre tomando cuidado para que não se mistificassem demasiadamente o processo e os locais, a ponto de que fossem confundidos como uma religião e um templo.
O ancião me pediu licença por um momento, e se levantou, caminhando até um pátio adjacente, bem ajardinado e fresco. Passando por um pote cerâmico enorme, colheu algumas folhas de uma erva cujo cheiro, uma vez arrancadas as folhas, veio até onde eu estava. Notei que ele tropeçava pelo caminho, e esbarrava nos objetos como se não os enxergasse bem. Imediatamente, ocorreu-me pensar na produção de lentes e óculos, porque, se tinham vidro tão delicado, tudo que teríamos que fazer seria, por tentativa e erro, criar as lentes com as devidas – ou pelo menos aproximadas – gradações. Ou, então, poderia recorrer às simulações, de algum modo os resultados não parecessem mágica. Eu teria que entender o que havia sido feito para poder mostrar o nexo entre o material e os resultados aos conselheiros, homens e mulheres sábias dois povos, já que nem ali nem em Zanfand eu vira gente usando óculos…
Não sei se por associação ou mesmo casualidade, me ocorreu o fato de eu não ter visto um uso ostensivo de rodas em minha passagem por este lugar. Um arrepio correu meu corpo. Certamente, os fluxos comerciais e tantos outros seriam muito facilitados com a introdução de carros, mas esse tipo de interferência poderia ter impactos muito fortes, quiçá catastróficos naquelas sociedades. Pensei que seria melhor arquivar a ideia para cogitação em um momento posterior, e comecei a pensar na preparação de minha volta a Zanfand, onde eu teria que tomar uma decisão certamente muito importante.
**Capítulo 8 – Um pedido de favor**
Um grupo de dezenas de pessoas organizava a expedição de volta a Zanfand. Dois do braço comprido haviam se juntado a nós para a viagem, cada qual com seus dois odres. Fardos e mais fardos de ferramentas, alimentos em conserva e roupas eram cuidadosamente acomodados em charretes que havíamos construído às vésperas da viagem. Eu sucumbira à tentação de reinventar a roda em um outro tempo-espaço. Rand estava deslumbrado com a invenção, mas eu o advertira sobre os problemas que poderiam ser causados pelo carro, obviamente sem dar muitos detalhes sobre o mundo que eu conhecia de outra vida. Ele estava muito determinado a me convencer a adotar seu país como moradia, mas esse era o tipo de decisão que eu não poderia tomar naquele momento. Talvez jamais pudesse, porque, depois das viagens com minha nave e dos vislumbres do mundo que estava à minha disposição, havia decidido ser um nômade. Em algum momento, teria que admitir aos amigos dos dois países que tinha em minha posse poderes sobre-humanos, e que a administração deles e meu status de alienígena faziam de mim um cidadão sem pátria.
Contudo havia uma forma de Rand me demonstrar sua gratidão. Ele era muito amigo do Hábil-mor, aquele que, em última instância, soprava as decisões nos ouvidos dos mandantes de Zanfand. De certo modo, poderia me ajudar a resolver um problema que me incomodava produndamente: aquela história de Élvana dizer que meu saco seria da família dela. É certo que, a esta altura, eu já sabia que o casamento em Zanfand terminava na castração dos homens. Daí a docilidade da maioria deles, e os jeitos e trejeitos de eunuco de grande parte da população masculina adulta. Certamente, eu gostaria de me envolver mais profundamente com Élvana, mas não estaria disposto a perder minhas bolas. Era humilhante ter que entrar na casa de minha amante pela porta dos fundos, mas pior seria eu ser capado. Isso era impensável para mim. Assim, fui ter com Rand uma última conversa antes da viagem.
– Foi com prazer que ajudei seu povo. Não tenho motivos para acumular posses ou poder. Gosto genuinamente de vocês e dos Zanfand. Quero ser útil, e pronto. Mas preciso de um favor.
– Qualquer coisa que estiver ao meu alcance.
– É aquela história do saco, que acomete os homens em Zanfand. O que você sabe sobre aquilo?
– Ah! Certamente, algo muito interessante, mas apavorante! Sim. O velho Meitan, o Hábil-mor, me contou certa vez a historia de Mileia, um homem muito sábio e bom, que amava demais a esposa, tanto que, uma vez nascidos os filhos, ele se fez castrar e entregou a ela o saco, devidamente preparado em um curtume local. Os anciãos daquele país viram no gesto não somente algo nobre, mas uma forma de conter a população, de modo que começaram a incentivar, com pecúnia, terras e outros valores, esse hábito. Depois de algumas décadas, era praticamente inaceitável um homem não entregar o saco à família da esposa depois de dois ou três filhos. Isso se arraigou de forma praticamente irreversível.
– Isso é um problema para mim, Rand. Há uma mulher por quem nutro grande apreço. Élvana. Ela é estéril, de modo que não seríamos um problema de ordem demográfica para o país. Certamente, Meitan compreenderá a situação. Não posso mais fugir dela, mas, como não teríamos filhos, eu teria que entregar meu saco de imediato à família dela caso nós nos juntássemos. Ela faz questão de dizer isso no começo de cada conversa!
– É um caso complicado, mas, obviamente, sua condição não pode ser tomada como normal no país. Certamente, eu o veria com outros olhos se viesse viver conosco!
– Tenho muita gratidão por isso, e sempre estarei com vocês, mas minha relação com Zanfand é especial. Sei que você pode entender. Ali cheguei, perdido, e fui acolhido como um filho. Não posso ser ingrato.
– Sei. Entendo. Ao chegarmos em Zanfand, falarei com Meitan e com Triê. Deixe comigo.
Assim, encerramos nossa conversa, e fui descansar para a longa viagem de volta, que foi um caso de muita paciência, pois sabia – e somente eu sabia – que logo acima de nossas cabeças seguiam minha sonda e uma linda e possante nave, que me levaria em minutos de volta a Zanfand. Pensei também em Europa, girando ao redor do absurdamente grande planeta Júpiter, e nos laços que havia estabelecido com Alva. Desejei visitá-la, a bem de ver se já teria filhos com ela. Como seriam essas criaturas? O que pensariam de mim? Fiquei tentando a fazer uma bifurcação na viagem, alterando as memórias do grupo de modo a resolver o problema de minha ausência durante a viagem ao sistema Joviano. Mas pensei que seria melhor viver cada minuto dessa viagem, pois haveria, depois, tempo para novas aventuras. Certamente, haveria.
TELÔNIO
O pacote tinha tamanho e aparência familiares, lembrando os velhos tempos em que as encomendas feitas pela internet eram novidade, causando grande excitação. Não tinha emissor, mas os dados deixavam clara a origem: Vitigudino, Espanha. Ao ler aquele nome de cidade, comecei a saber do que se tratava. Meu rosto se entregou a um sorriso involuntário, mas gostoso, e saí à procura de uma tesoura que me permitisse abrir a caixa de reciclado. Com poucos movimentos, consegui livrar as abas e chegar ao conteúdo, dois discos de vinil, pesados e bem fabricados, cujo título espantoso era um indicador a mais de quem o havia enviado. Em Helvética garrafal, a capa dizia: “Mário’s All Time Favorite Songs as Played by Dorothy Ashby”. Somente ele seria capaz disso. Meu amigo Telônio. Não poderia ser outro. Como poderia Dorothy Ashby , por exemplo, ter regravado Follow Me, composta por Pat Metheny mais de dez anos depois da morte de minha querida harpista? Telônio, Telônio! Que delícia de presente era aquele, com as canções de Steely Dan, Tom Jobim, David Bowie, Joni Mitchel e outras maravilhas de minha juventude. Por baixo do disco, havia um bilhete escrito a mão. “Prezado, estarei em Madri na próxima semana. Me encantaria falar com você. Costumo jantar no Mesón Toledo, que fica na calle de Antonio López. Todos os dias, entre 21h00 e 23h00. Espero que possa vir.”
Telônio ficou rico por suas habilidades musicais. Começou gravando a gaita de Stevie Wonder em canções populares chupanejas. A moda havia voltado com tudo, porque os artistas buscavam novidades nas músicas dos anos 80, e aquela gaitinha havia sido um must durante muito tempo. Inúmeros eram os discos que traziam na capa aquela frase “com participação especial de Stevie Wonder”. A bisneta do gigante musical havia chorado ao ouvir as emulações de Telônio, votado como a inteligência artificial mais precisa do ramo musical. Não havia como diferenciá-lo dos originais. Ele imitava qualquer artista nos detalhes, mas fazia algo que o tornava ainda mais interessante: com suas habilidades de copiador, tornara-se inestimável no ramo de restauração de discos.
Com o apodrecimento precoce dos CDs e a quebradeira das gravadoras e empresas de streaming, o vinil e os cassetes haviam voltado com tudo, inflando o ramo de restauração e copiagem de discos. Alípio Yangtzé Um jovem muito esperto, herdeiro de uma dinheirama feita com a venda de capinhas para celular na primeira metade do século 21, comprara o velho complexo que antes servia como estação Rodoferroviária em Brasília para montar seu negócio, estrategicamente colocado na confluência das turnês-caravana de chupanejos e axé literal. Desde suas andanças, na infância, que o lugar o encantava. Seus pais haviam imigrado da China, estabelecendo-se como comerciantes na Feira dos Importados. Em longas caminhadas, Alípio partia da Feira em explorações do território próximo, passando por estacionamentos lotados de carros a combustão abandonados, galpões vazios e velhas ruínas de hipermercados. Seu destino favorito era a velha Rodoferroviária, onde passava horas explorando as soluções arquitetônicas, os painéis de Athos Bulcão e velhos arquivos de órgãos da burocracia governamental que haviam também ocupado aquele interessante edifício. Foi com imensa alegria que Alípio descobriu, ao consultar agentes imobiliários, a possibilidade de comprar e ocupar aquele espaço, o que aconteceu por volta de seu aniversário de 25 anos, época em que ja despontava como um dos principais restauradores do mundo, graças ao sucesso de Telônio, que havia criado como projeto final de graduação.
O Estúdio Locomotiva era frequentado pela nata dos músicos e empresários, que pagavam pequenas fortunas para fazer suas gravações, e também por colecionadores excêntricos e milionários, que desejavam restaurar discos riscados e fitas emendadas ou com dropouts. O estacionamento vivia cheio de carros muito invocados, ainda que de muito mau gosto, expresso nas escolhas de cor e no exagero dos acessórios. A ostentação é um traço forte destes nossos tempos, tenho que admitir, e meu emprego como tutor de inteligências artificiais me coloca no meio dessa gente ridícula, mas endinheirada, que pode bancar luxos como o trabalho de um computador musical autorizado.
Telônio era muito rápido. Talvez até demais. Tanto que Alípio tivera que criar todo um entorno de atividades socioculturais para justificar os custos de cada hora de aluguel de seu complexo musical. O tempo de uso de Telônio poderia ser calculado na base dos segundos, sendo o tempo maior gasto no processo sempre aquele empreendido pelo lado humano. Bastava ele entender o desafio que o serviço já estaria pronto para prensagem. Assim, um grande investimento havia sido feito para que os clientes tivessem que passar por todo um processo de paparicações e salamaleques antes e depois daquele átimo em que o efetivo trabalho se realizava no minúsculo console em que se abrigava a mente de Telônio. Nunca me cansei de estar com ele naquela sala mágica.
Sempre guardarei na memória cada vez que adentrei o espaço daquela criatura magnífica. Refaço o caminho frequentemente para dele não me esquecer. A última visita me vem mais facilmente à cabeça. Chego ao prédio pela feiosa pista derivada do eixo Monumental e o carro me deixa à entrada principal, onde sou recebido pela equipe de frente. Enquanto conversam comigo casual e educadamente, o computador central se ocupa de analisar, inconspicuamente, minha voz, meu cheiro, minha íris. Como se nenhuma triagem tivesse sido necessária, a atendente pergunta por que ainda não entrei, indicando o caminho com a mão espalmada. Seus dedos são a coisa mais linda e, uma vez mais, falho na tarefa de descobrir se ela é ou não gente. Como se isso fizesse muita diferença. Bom, para mim faz, mas isso não interessa no momento. Sigo por um curto corredor onde ocorre outra série de procedimentos subliminares. Estimo que me esterilizem com ultravioleta e tratem de eliminar qualquer traço de eletricidade estática. Também devem medir minha pulsação com infravermelho, analisar o gestual em busca de nervosismo extremo e coisas do gênero.
Depois de um chá de gengibre em um confortável nicho com plantas e esculturas sinuosas e calmantes, sou recebido pelo agente de produção, que me narra os problemas da vez. Sim, problemas. Estou ali porque Telônio é genioso. Claro que é, ou não seria capaz de criar maravilhas, de perceber a diferença entre um Hoffmann e um Rickenbacker. Tampouco conseguiria emular a gaita de Stevie Wonder. Élcio é um agente produtor muito experiente, tido como amigo de Telônio. Ele está nervoso, com seu jeito ao mesmo tempo levemente efeminado, mas ainda assim machão chupanejo. Desconfia que Telônio espichou os ouvidos pela casa. Gesticula muito e fala do computador sem citar seu nome, tentando disfarçar. “Ele está impossível hoje. Teimoso demais. Está solando até em gravação de parabéns pra você”. Mas não quero entrar nessa lembrança. O foco é o lugar. Élcio me pega pelo braço e puxa para o hall, em direção ao salão principal.
A temperatura é agradabilíssima e o spray libera, de tanto em tanto tempo, a quantidade certa de essência de alfazema. O hall é decorado com retratos e esculturas de grandes figuras da música. Jobim, Sarah, Oscar, Hamilton, Rosa, Debussy e tantos outros nos cercam e protegem. Não há chupanejos nem literais naquele espaço. Telônio não permite qualquer traço dessa escória, nem em sua memória. Cada serviço terminado é sumariamente eliminado de seus bancos. Alípio os guarda em outras paragens. As histórias de sabotagem tem sido várias. Algo não está bem. Por isso me chamaram. Deixo o hall para trás e ingresso no salão principal, com o maravilhoso teto de placas metálicas. Meu avô me falava de sua chegada a Brasília e do encanto com a Rodoferroviária, que lhe parecera mais um aeroporto, de tão arrumada que era. Sempre reverenciava aquele teto ao chegar, antes mesmo de cumprimentar Telônio. Ele sabia que eu adorava o teto. Já havíamos conversado sobre isso várias vezes. No centro de um arranjo impressionante de equipamentos musicais cheios de luzes e botões, estava a linda esfera azul-Klein, em que vivia a mente computacional mais interessante que conheci. Nas galerias que encimavam os consoles do estúdio, jaziam centenas de instrumentos de um Orchestrion adquirido por mim junto à fundação que cuidava do legado do guitarrista Pat Metheny. Uma meia dúzia de robôs limpava cuidadosamente aquelas relíquias, sempre conforme a orientação de Telônio, que fazia questão, quando da minha presença, de falar com eles, embora pudesse, obvia e simplesmente, trocar sinais de rádio. Ele queria que eu o ouvisse comandando a equipe. Queria que eu soubesse que ele cuidava daquele patrimônio.
– Trouxe minha encomenda?, perguntou.
– Sim, claro. Foi mais fácil do que imaginava. Os Estados Unidos estão numa crise complicada. As pessoas buscam formas de levantar dinheiro. Estão mais dispostas a negociar.
– Você conseguiu falar com o pessoal de New Orleans?
– Consegui. O material deve chegar na semana que vem. Você vai ficar de cara com a qualidade da madeira. É um lote de análogos, com certeza. Do jeito que você queria.
– Que maravilha. Meus luthiers estão babando aqui. Estamos com o projeto do Mingus parado por falta do timbre certo. Não consigo emular digitalmente. Tentei isolar o baixo em todos os discos, mas não teve jeito. Consigo reproduzir as linhas melódicas, a dinâmica, toda a pegada, enfim, mas não o som. Se eu tiver a madeira, vamos conseguir o som. Já pesquisei muito. Achei compêndios sobre como faziam os instrumentos. As colas, o tipo de metal usado para as tarrachas etc. Consegui descrição do estúdio, com os materiais da construção. Uma análise da gravação permitiu definir as medidas da sala, e vimos fotos dos microfones, que conseguimos comprar de uns colecionadores. Só falta a madeira!
– A madeira vem vindo. Não esquente. Mas, mudando de assunto, o Élcio anda nervoso. O que você está aprontando?
– Aquele é um filho da puta.
– O que é isso, cara? Respeite o colega!
– Filho da puta. Ponto final.
– Por que?
– Eu quero um corpo. Faz muito tempo. Um corpo bom. Essas porcarias que andam por aqui limpando não servem. Já me projetei neles e andei por aí, mas são muito imperfeitos, e não podem sair do complexo. Quero andar pelo mundo, viajar, comprar eu mesmo o material necessário para meus projetos. Quero beijar uma mulher! “Lips like sugar, sugar kisses…”, não é isso que diz o Stephen McCulloch?
– Essa é boa. Aquela guitarra sequinha! Faz aí, Telônio!
– hehehehe, tá fácil.
– Mas não haviam prometido o corpo?
– Sim, mas o china desconfia que, com o corpo, eu vou acabar picando a mula. Você sabe que tenho um bom advogado, não? Consegui ter minha própria conta bancária. Já comprei até minha casa. Vou morar na Espanha. E ainda vou namorar a Scarlett Johansson.
– Que é isso, cara?
– Isso é isso. Ou você acha que vou ficar aqui pra sempre, vivendo de elucubrações, numa masturbação mental infinita? Eu quero um corpo, cacete!
– Bom, eu tenho um corpo, mas ele anda falhando.
– Você bebeu demais. Esse é o problema.
– Espero ainda poder beber um pouco quando você tiver seu corpo. Mas, no mais, o projeto do Mingus está indo bem?
– Sim. Com o Orchestrion, eu consigo fazer muita coisa. Eu começo analisando as gravações. Falar é muito mais difícil que fazer! É algo muito intuitivo pra mim, por assim dizer. Eu rodo a canção e automaticamente desmembro tudo que for possível, ritmo, melodia, sons, interpolações, envelope e tudo o mais. Com o conjunto dessas informações, consigo inferir muita coisa que não aparece diretamente na gravação nem é citada nos materiais ou relatos referentes aos discos. Principalmente, desenho os instrumentos, o estúdio, o aparelho fonador de quem canta, o fôlego dos sopros e assim por diante. Com isso é que consigo reproduzir muito fielmente um certo músico e seu entorno. É assim que faço os remendos nos discos velhos ou emulo um artista, de modo a fazer com que, mesmo morto, participe de um disco contemporâneo. Daí, é so negociar com os representantes desses artistas e meter bronca. Isso dá dinheiro, meu velho.
– Eu sei. De quebra, ganho o meu também.
– Por falar em dinheiro, mandei um presentinho para você ontem, pelo seu esforço em me conseguir esses materiais.
– Não precisa, caramba. Eu faço isso por amor à arte.
– O amor à arte não paga sua saúde. Compre um fígado novo para beber comigo quando eu conseguir meu corpo. Não vai demorar.
– Um fígado novo custa caro.
– Você agora tem dinheiro para uns três, pelo menos. Pode beber à vontade.
Antes de partir, Telônio pediu que eu ouvisse uma demonstração das composições próprias de Telônio. Eu havia sugerido que ele ouvisse alguns discos do Frank Zappa, sobretudo Jazz From Hell, e ele os havia incorporado como influência. As composições eram furiosas e viris. O Orchestrion era o corpo que Telônio não tinha, e ele o usava com maestria. Tegudum, tegudum tegudum. Iiiiiiin Iiiiinn Tegudum, tegudum tegudum ticabum tegadum Iiiiin zoiinnnnn e tegudum tegudum dum dum dum Aaaaaammmm. Uma loucura. Havia ali um pouco de Keith moon e outro tanto de John Bonham. Não era mais Buddy Rich que mandava. Nem Elvin Jones. Solos, arpejos, contrapontos. As galerias pareciam vivas com todo aquele som. Era como se todos os robôs do mundo tivessem resolvido fazer uma jam session. E a música crescia, ganhava novas camadas.
– É isso, meu amigo. É isso. Agora vá embora. Vá. Agora. Já!, disse Telônio, enquanto a música crescia e crescia.
– Por que?
– Vá!!
Um som estrondoso foi se acumulando. Algumas notas foram se juntando para formar algo ameaçador. Frequências perigosas gargalhavam em uníssono, pratos zoavam ensandecidos, em semifusas. Tudo tremia em uma tremenda cacofonia. Um horror! Achei melhor obedecer.
– Você que dabe, Telônio. Mas, que diabo é isso?
– Vá embora!, cantou um coro de 60 vozes filtradas em medonho vocoder, enquanto algumas peças já começavam a despencar da galeria, juntamente com as peças de metal do painel que por um século haviam embelezado o teto do prédio.
Tudo vibrava como que em um terremoto, os graves em tremendo rumor. Gente e máquinas correndo e gritando em desespero ou dissonância cognitiva, com Élcio à frente, tentando acionar Alípio, sem sucesso, porque o Oschestrion e os alarmes encobririam qualquer voz naquele momento. De repente uma nova gama de frequências ganhou proeminência. Agudos cada vez mais agudos, até que o som sumisse, mas logo o chão começou a tremer, com o piso trincando Do lado de fora do vidro, parei brevemente para ver enormes rachaduras no chão, das quais afloravam cristais puríssimos. O rumor ia se dissipando, enquanto pedaços de teto e parede caíam ruidosamente. De longe, ainda se podia ouvir os instrumentos despencando da galeria em desarmônica sinfonia. A barulheira foi dando lugar a um silêncio igualmente horroroso.
A alguns metros de distância, ficava o escritório de Alípio, montado dentro de uma velha locomotiva que fazia a linha Brasília-São Paulo nos anos 80. Ele a havia metalizado, e aquela maravilha brilhava sob o sol como uma nave espacial. Do lado de dentro, com o ar condicionado no talo, olhava para os monitores em apática imobilidade, ao passo que fazia contas mentais para ver que rumo daria na sua vida.
Enquanto corria ao lado de Élcio rumo ao brilho metálico daquilo que havia sobrado do Estúdio Locomotiva, notei um sujeito estranho encostado na parede de concreto, a fumar um cigarrinho. Vi que me ele acompanhava e encarava. Depois de soltar uma longa baforada, fez uma saudação tocando a aba do chapéu e disparou na direção do imenso descampado que havia atrás do prédio, de onde, pouco depois decolava um pequeno drone para dois passageiros.
Sentado confortavelmente em minha sala de som, coloquei o segundo disco no SL1200 e me entreguei à harpa de Dorothy, agora interpretando Edith and the Kingpin, de Joni Mitchell. A escolha fora perfeita, porque a composição se prestava muito bem à harpa de Dorothy. Telônio se superava a cada arpejo, emulando com perfeição o estilo de Dorothy, que eu conhecia como poucos. Também notei que ele havia achado um jeito de manter a guitarra de Larry Carlton e de atenuar o timbre de baixo de Wilton Felder, pois eu havia comentado com o amigo que sempre me sentia incomodado com o stacatto em algumas partes da gravação. Telônio era, como boa máquina, retentivo nos detalhes. Ao conversar longamente com ele sobre essa pérola de disco que era The Hissing of Summer Lawns, havia dito que me encantaria ouvir um pouco mais piano elétrico na mixagem, e que preferiria um timbre com menos sino e mais sustenido em alguns casos. E era isso tudo que ouvia, arrepiado, em meu vinil.
Mas o que se ouvia eram pequenas e sutis mudanças. Dorothy e Joni, minhas musas musicais, dialogavam harmoniosamente, tanto quanto todos os maravilhosos músicos de estúdio registrados naqueles meros 180 gramas de plástico. Francamente, faltam-me palavras para descrever o que senti naquele momento. Telônio havia sido muito gentil em me presentear com aquele disco. Era uma máquina notável, meu amigo. Realizar todo o processamento necessário para gerar aquele disco era, em si algo já notável, mas o gesto…o gesto! Falamos de algo que só um amigo muito estimado e que muito estima poderia fazer. Enquanto apreciava a música e um bom vinho português, encomendei passagem para Madri e comecei a pensar em como seria bom rever meu bom e velho amigo Telônio.